Pensar
sobre este assunto me trouxe à lembrança Santo Agostinho: “Se não me
perguntam o que é o tempo, eu sei. Se me perguntam o que é, então não sei”.1
Sinto o mesmo ao tratar da avaliação dos textos dos alunos...
Por
que me atrevo? De um lado porque o tema me interessa profundamente e de outro
porque me sinto encorajada desde que Clarice Lispector escreveu gostar muito
daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno voo e cai sem graça no chão.
Tentando um pequeno voo
Tudo
começa antes de ler, no momento em que tocamos os textos. Há um ritual em tudo
isso. Nossas mãos podem se mover com delicadeza afetiva, quando reencontram um
conhecido querido, ou com curiosidade ávida, quando se deparam com quem ainda
não foram apresentadas.
Em
ambos os casos, o que está em jogo é o respeito pela autoria, o reconhecimento
do lugar do autor que, por definição, é “aquele de que alguém ou algo nasce”.2
Quem escreve sabe o quanto é difícil parir um texto. Neste sentido, dou as mãos
ao jornalista Armando Nogueira que disse certa vez: “Eu não gosto de
escrever, gosto de ter escrito”3.
Pois
bem, não basta engravidar de palavras, é preciso saber costurar, bordar,
cortar, embalar, acarinhar. Tanto é que são comuns partos prematuros e até
abortos. A escritora Lygia Fagundes Telles conta seu processo: “Ler, ler,
ler. Escrever, escrever, escrever e rasgar muito. Eu rasguei muito”4.
Se assim é com escritores profissionais, o que
dizer os autores em formação, ou seja, dos alunos? Em primeiro lugar, que são
autores! E mesmo se parirem algo aparentemente sem vida, é importante nunca
perdermos de vista que “as cinzas guardam as últimas confidências do fogo”5.
Mas
o que será que decide se há ou não vida pulsando em um texto? O tempo, os
prêmios literários, as editoras, os leitores, os críticos, a propaganda, a
qualidade do texto em si, a fama do escritor?
Não
sei responder como se dá no mundo, mas no caso da Olimpíada, toda uma
engenharia foi pensada para cercar cuidadosamente a questão. Essa engenharia se
sustenta em critérios de avaliação comuns a todas as instâncias avaliadoras.
Mãos que tocam os textos
PROFESSOR
A primeira avaliação acontece na sala de aula. O professor é a pessoa que sabe sobre o processo de trabalho vivido e sobre as diferentes situações de produção** pelas quais passaram os alunos. É ele, portanto, quem mais tem condições e elementos para conversar com os autores sobre os textos produzidos.
A primeira avaliação acontece na sala de aula. O professor é a pessoa que sabe sobre o processo de trabalho vivido e sobre as diferentes situações de produção** pelas quais passaram os alunos. É ele, portanto, quem mais tem condições e elementos para conversar com os autores sobre os textos produzidos.
**O encaminhamento da
sequência didática e seu enlace com as aprendizagens dos alunos pautam
diferentes situações de produção. Se, por exemplo, pouca chance é dada aos
alunos para que aprendam a olhar um texto escrito por eles próprios com a
distância necessária, dificilmente conseguirão avaliar com autonomia se o que
escreveram cumpre o objetivo proposto, se o modo como escreveram captura o
leitor, se a organização do texto está bem construída, se as características do
gênero foram respeitadas etc.
A
conversa com os alunos pede preparação. Por isso, o professor precisa estudar
cada um dos textos produzidos, fazer anotações, mapear a lápis as produções.
Este estudo é, na verdade, uma leitura em diferentes camadas.
Na
primeira camada, o professor entra em contato com o conteúdo geral do texto,
isto é, busca compreender o que o autor quis dizer. Este é o momento de o
professor conversar com seus botões: o que ele quis dizer está dito? Se
sim, por quê? Se não, o que atravancou o caminho - excessos, ausências,
problemas na sequência?
Para
responder a essas questões, o professor vai para a segunda camada de leitura.
Nela já é possível investigar a relação entre o todo e suas partes, deter-se em
determinados trechos, descobrir como certas referências estudadas foram
transpostas para os textos. É o momento em que se amplia a noção do que foi
dito, pois entra em cena uma maior percepção sobre o como foi dito.
Na
terceira camada, com o olhar bem mais apurado, o professor pode fazer um raio X
do texto porque já sabe apontar ideias interessantes, momentos confusos, belas
passagens, necessidade de reconstrução de trechos, níveis de proximidade e
distância com relação ao gênero e incorreções.
O
reconhecimento da existência de valiosas pedras que, no entanto, ainda pedem
lapidação, anuncia dois gestos: aceitação e intervenção.
A
aceitação se refere ao convite feito por Saramago – “Se podes olhar, vê. Se
podes ver, repara”6. A intervenção diz respeito ao momento de
compartilhar com os autores as impressões de leitor mais experiente e,
portanto, capaz de fazer apontamentos: reconhecer marcas de autoria, avaliar a
adequação do texto ao gênero e à temática e observar as convenções da escrita.
Textos
revisados e finalizados, é chegada a hora da avaliação final do professor, uma
vez que é ele quem selecionará um dentre tantos para encaminhar à próxima
instância avaliadora. Para realizar essa tarefa, recomenda-se que se baseie na
Tabela de critérios. Além de entrar em cena no momento da seleção final, a
Tabela oferece ao professor uma possibilidade que nenhuma outra instância
avaliadora tem: a de apurar o olhar sobre os textos dos alunos para planejar
intervenções. Para entender melhor essa ideia, basta pensar que as diferentes
camadas de leitura sobre as quais conversamos anteriormente são a tradução da
Tabela em versão expandida.
Ao
analisar e tomar consciência das diferentes naturezas de intervenção
necessárias a seu grupo de alunos, o professor ainda tem a chance de ver
revelado o resultado do caminho percorrido. Com isso, poderá replanejar rotas e
avançar cada vez mais. O princípio aqui é o mesmo do marinheiro: depois da
primeira viagem, é possível fazer melhores antecipações sobre as próximas.
CD-ROM : uma ferramenta para os avaliadores
O
mesmo cuidado que a Olimpíada tem em orientar o trabalho dos professores
aparece quando o assunto é avaliação. Por isso, os membros das Comissões
Julgadoras Municipais e Estaduais são convidados a participar de cursos
virtuais, um em cada gênero (Poema, Memórias literárias, Artigo de opinião e
Crônica). Os cursos apresentam orientações e atividades que buscam ajudá-los na
realização de seu trabalho. Com duração aproximada de seis horas cada um, os
cursos são elaborados a partir das lições aprendidas ao longo das várias
edições do concurso. São, portanto, uma síntese das principais contribuições
(dúvidas, questões, descobertas) de vários avaliadores de todo o país. Suas
vozes podem ser ouvidas nas conversas entre as personagens fictícias
(professores, escritores, jornalistas etc.).
Mesmo
sendo indicados pelo seu conhecimento e sensibilidade, os avaliadores têm uma
atribuição cuja responsabilidade pede apoio. Afinal, não é fácil selecionar,
dentre os vários textos, aqueles que se destacam por suas qualidades e que
merecerem ser premiados.
Além
dos critérios de avaliação estabelecidos pela Olimpíada, é preciso que os
avaliadores também valorizem cada produção e levem em conta a idade e a escolarização
dos alunos participantes, os tais autores em formação de que falamos no começo
desta conversa.
Assim,
o conteúdo do CD-Rom é um convite ao exercício da leitura em camadas e à
reflexão a partir de situações-problema reais. A ideia é que ao longo das
atividades de análise de textos produzidos em anos anteriores, os avaliadores
possam ir colecionando parâmetros para enfrentar com mais segurança a análise
dos novos textos.
Palavras finais
Comecei
esta conversa com uma pergunta – O que está em jogo quando avaliamos os textos
dos alunos? – confesso não saber se dei conta de respondê-la satisfatoriamente.
Mas sei, depois de todo o esforço, que o jogo tem nome e supõe a presença de
dois participantes: de um lado autores e, de outro, leitores, ambos encarando a
montagem de dois difíceis Quebra-cabeças – a construção de um texto e a
avaliação da produção textual.
Por
motivos óbvios, solidarizo-me neste momento com os autores e deixo para eles,
junto com votos de boa-sorte, os conselhos de um grande mestre:
“(...)
procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde.
Evite de início as formas usuais e demasiado comuns: são essas as mais
difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir
algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes.
(...) relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé
em qualquer beleza – relate tudo isso com íntima e humilde sinceridade.
Utilize, para se exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos
e os objetos de sua lembrança. Se a própria existência cotidiana lhe parecer
pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta
para extrair as suas riquezas. (...) Se depois dessa volta para dentro, desse
ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for
se são bons, (...) pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um
pedaço e uma voz de sua vida.7”
1
Confissões de Santo Agostinho, XI, 14, in BORGES, Jorge Luis. Esse ofício do
verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
2
Definição que está no Dicionário da Língua Portuguesa, organizado por
Hildebrando de Lima, com revisão de Manuel Bandeira e José Baptista da Luz. São
Paulo Editora S.A., 10ª edição.
3 O
livro entre aspas: “o que se diz do que se lê”: frases para escritores,
leitores, editores, livreiros e demais insensatos. Carlos Carrenho e
Rodrigo Diogo Magno (organizadores). Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005 il.
4 O
livro entre aspas: “o que se diz do que se lê”: frases para escritores,
leitores, editores, livreiros e demais insensatos. Carlos Carrenho e
Rodrigo Diogo Magno (organizadores). Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005 il.
5
Epígrafe de Ramón Gómez de La Serna em Brasil, 1989. A chama de uma vela.
Rio de Janeiro, Bertrand. Brasi, 1989.
6
(epígrafe do Livro dos Conselhos). SARAMAGO, José. Ensaio sobre a
cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
7
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. São Paulo: Globo, 2001.
Cris Zelmanovits é pedagoga pela
Universidade de São Paulo (USP), com especialização em Psicologia e em Arte
(Instituto Lorenzo di Médici, Firenze, Itália). Integra a equipe de assessoria
da coordenação do Cenpec. Consultora de projetos de literatura em redes de ensino,
museus e outras instituições. Coordenadora de programas de formação de
professores e gestores escolares para o trabalho com língua portuguesa junto a
crianças e adolescente
Profª. Drª. Simone de Jesus Padilha
Universidade Federal de Mato Grosso
A
Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro está perfeitamente
adequada ao que tem sido sugerido desde a década de 90, por meio dos documentos
oficiais, para o ensino da língua materna em nosso país: um trabalho voltado para o eixo dos usos da
linguagem, que toma o texto como unidade e os gêneros como objetos de ensino.
Isso constitui aquilo que o professor Egon Rangel chama de uma virada
pragmática. Para outros teóricos trata-se de uma nova abordagem ou uma mudança
paradigmática. É interessante pensar que o professor da Escola de Comunicações
e Artes da USP, Luli Radfaher diria, brincando, que paradigma, na verdade,
constitui uma “paradinha”. E qual é a paradinha da vez, no ensino de Língua
Portuguesa? E por que se faz necessária?
Desde
os anos 80, mais precisamente a partir de 1984, com a publicação do clássico O
texto na sala de aula, do professor João Wanderlei Geraldi, linguista
renomado da UNICAMP, é que as questões que norteiam o ensino de língua
portuguesa tem se destacado. E isso ocorre não apenas na academia, mas nos
cursos de formação de professores de todo o país. E Geraldi se perguntava
(creio que ainda se questiona), como é que passamos onze anos na escola, no
mínimo, estudando a língua portuguesa praticamente todos os dias, e saímos sem
conhecê-la. Ou melhor, como é que a estudamos na escola por tanto tempo e não
somos capazes de sair dela como leitores críticos e produtores efetivos de
textos?
Numa entrevista à revista Na
Ponta do Lápis, o professor da Universidade de Genebra, Joaquim Dolz diz
uma frase que parece responder, um pouco, a isso: de que adianta conhecer o
código, se não entende o texto? E eu complemento: se não é capaz de redigir um
texto de sua AUTORIA. E compreende-se, aqui, autoria em letras maiúsculas, como
o exercício de tornar-se autor, de ter sua própria voz, de ser produtor
independente. Ou seja, podemos dizer que nosso ensino esteve e ainda está muito
focado na aquisição do código e na aquisição da nomenclatura sobre ele, isto é,
no ensino da metalinguagem.
Dos anos 80 para cá, quando esta
discussão se tornou mais premente – e ainda é urgente, pois a situação não
mudou – nossos alunos continuam fracassando em Língua Portuguesa na escola,
haja vista o resultado das avaliações oficiais nacionais e internacionais, com
todas as ressalvas que possamos fazer a elas: o brasileiro não é capaz de ler
um texto, de interpretá-lo além da estratégia básica de localização de
informações e produção de inferências simples.
Neste
contexto, e tendo em vista outros processos de mudanças das políticas públicas
voltadas à educação, como a própria LDB e a reestruturação de nossos sistemas
de ensino, é que surgiram propostas mais efetivas de mudanças nas práticas de
ensino-aprendizagem da língua materna na escola. Os PCN, e destaco aqui principalmente o documento de
terceiro e quarto ciclos, são claros em propor um ensino pautado numa nova
concepção de linguagem (vista como interação, numa nova abordagem). Trata-se do
ensino dos gêneros como conteúdos – como objetos de estudo das aulas – trazendo
à baila o pensamento de Mikhail Bakhtin numa perspectiva sócio-histórica de
aprendizagem, que leva em conta, sobretudo, o pensamento de Vygotsky, ao
salientar a importância de se observar as necessidades e possibilidades de aprendizagem
do aluno.
É
com igual coerência que o programa Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo
o Futuro vai estruturar-se teórica e metodologicamente, considerando os
usos da linguagem em diferentes esferas da atividade humana e que se configuram
em usos recorrentes e próprios, se estabilizando naquilo que vai se denominar
gênero de texto, ou gênero textual. Para os mais puristas estudiosos de
Bakhtin, em gêneros do discurso. Ou seja, da conversa íntima, familiar e do
bate-papo de bar até a notícia do jornal, o romance, o poema, a ata, a
procuração, a dissertação de mestrado, enfim, convivemos com diferentes
práticas sociais que se dão em diferentes práticas de linguagem e que se nos
apresentam em diferentes gêneros. A noção de gênero estrutura o material da
Olimpíada, pois cada caderno tem como foco o ensino de um gênero específico e,
a cada edição do programa, novos gêneros são inseridos no processo.
A noção de gênero tem a
qualidade, como já teorizou o professor Schneuwly, também da Universidade de Genebra,
de ser um mega-instrumento. A partir do gênero podemos aprender diversos modos
de usar a linguagem e ter diversas capacidades de linguagem. Assim, como diz a
professora Roxane Rojo, da Unicamp, não se trata apenas de ensinar o gênero,
mas de pensar ‘no que ensinar por meio de um gênero’. Não é preciso, portanto,
explorar todas as propriedades de um artigo de opinião, esgotando o tema, mas
selecionar um foco de aprendizagem que pode ser, por exemplo, a capacidade de
tomar uma posição ou refutar um argumento. Neste sentido, o programa consegue,
através do procedimento das sequências didáticas, que se traduzem no material
pelas diferentes oficinas de cada gênero, promover uma aprendizagem passo a
passo em que o professor poderá dispender mais tempo para uma capacidade do que
outra, conforme as necessidades e as possibilidades de sua turma.
Daí,
temos a noção de aprendizagem que é base para a orientação metodológica do
programa. Ou seja, tentar
saber o que o aluno já sabe sobre aquele gênero. Depois, trabalhar com um
objetivo de aprendizagem através de diferentes configurações de trabalho, em
dupla, em trabalho coletivo, que vai ao encontro do que Vygotsky preconiza como
um trabalho pedagógico que atua na ZPD (Zona de Desenvolvimento Proximal),
através da colaboração do par mais avançado. Em alguns momentos o próprio
professor e, em outros, os colegas.
Vale
frisar que esta consideração das ideias de Vygotsky sobre aprendizagem se
traduz em muitas ações dentro da sequência, seja para a leitura ou para a escrita,
já que o propósito, ao fim da oficina de cada gênero, é uma produção individual
do aluno naquele gênero estudado. Interessante lembrar de um simples exercício
- me recordo da atividade nos cursos on line da Comunidade Virtual -, em
que um personagem envia emails ao outro tentando ajudá-lo na compreensão do que
seria o ensino a partir dos gêneros textuais. Desta forma, tal teoria da
aprendizagem embasa todo o programa e não somente aquele material com que o
aluno vai entrar em contato, mas sobretudo o material que o professor vai ter
em sua formação – vivenciando na própria pele este processo.
Assim,
temos que a OLPEF, tomando
o gênero como objeto de ensino-aprendizagem de língua materna, pode
proporcionar ao professor, e consequentemente ao aluno, uma nova relação com a
linguagem e com a língua portuguesa, tomando contato com a língua em uso e
definindo O QUE ESTUDAR por meio dos diferentes textos em diferentes gêneros
que se apresentarão para leitura e escrita. Outro ponto em que insisto é o COMO,
É O FAZER PEDAGÓGICO, que considera o aluno detentor de um saber que precisa
ser percebido e, a partir daí, aprimorado, refletido e ampliado. É a
consideração da ZPD. E essa consideração – parece estranho dizer que HÁ ENSINO
– ninguém aprende a ler só lendo ou a escrever só escrevendo. Ler e escrever –
além do domínio do código – pode ser ENSINADO e APRENDIDO. No programa, isso se
traduz nas sequências didáticas e nas oficinas.
Compreendo que toda mudança é de difícil aceitação
e que estamos numa fase complicada do ensino de Língua Portuguesa. Uma fase de
transformações que são culturais e que também mexem com nossas práticas,
concepções, modelos e nos materiais didáticos. Mas, afirmo, com toda segurança
e com base no pouco que já estudei sobre o tema e na minha experiência de 24
anos como docente, é que esta proposta é produtiva, positiva. Ela pode auxiliar
a gerar grandes frutos e mudanças em nossas salas de aula.
Maria
Alice Setubal*
Maurício
Ernica**
Publicado
no Estadao.edu
"O
fato de um livro aprovado pelo Ministério da Educação (MEC) afirmar que é
legítimo, sim, usar modos de falar populares reavivou antigas polêmicas. Como
de hábito, várias vozes se levantam, a maioria contrária à posição do livro, e
com muita frequência se manifestam com tom carregado de paixões.
Antes
de tudo, antecipamos nosso ponto de vista: a escola deve assegurar aos alunos a
aprendizagem da variante culta da língua portuguesa, que é a variante usada nos
principais debates sobre as questões da vida pública, na produção científica e
em grande parte de nossa produção cultural. No
que diz respeito a esse objetivo, não se devem fazer concessões de espécie
alguma.
Isso posto, cabe-nos dizer que o debate embola uma
série de questões diferentes e seria produtivo se pudéssemos ter clareza sobre
elas e discuti-las com alguma serenidade.
Primeiro:
somos, ainda hoje, culturalmente reféns de uma gramática normativa e de um
ideal de correção linguística muito distanciados da norma culta falada e
escrita efetivamente praticada. Para ficarmos com uma ilustração simples: de
acordo com a gramática normativa e os manuais de redação, deveríamos usar
sempre o verbo gostar com a preposição de. Uma pesquisa realizada pelo
linguista Carlos Alberto Faraco, da Universidade Federal do Paraná (UFPR),
mostra, porém, que jornais de grande circulação e peças de publicidade rompem
com essa regra, escrevendo, por exemplo, do jeito que você gosta e não do jeito
de que você gosta. Esse é um exemplo simples, mas usual. Todos temos a
lembrança de aulas de gramática que nos mostravam que falamos uma língua
errada. Na verdade, somos reféns de uma gramática normativa anacrônica e de uma
idealização do que seria o modo correto de falar e de escrever, que não
reconhece a validade e a adequação sequer da nossa variante culta escrita, tal
como praticada de fato.
Segundo:
não há uma língua portuguesa única, mas várias. A língua varia na história e
nos grupos sociais. As variações não estão apenas no “sotaque” ou no
vocabulário das regiões e grupos, estão também nas construções sintáticas.
Muitos dizem os livro; há quem pergunte quer ficar aqui mais eu?. Os mineiros
dizem estou apaixonado com, os cariocas, tu vai e, os paulistas que alguém
aposentou (sem o se). São exemplos simples, mais uma vez. Não estamos falando
dos desvios daquele que está aprendendo a língua e se arrisca em hipóteses
equivocadas, mas sim de formas de longa duração e consagradas pelo uso. No
confronto das variações, temos que o falar de uns é errado segundo as normas de
outros. E aqui está um ponto importante: uma dessas variantes é a variante de
prestígio, a variante usada pela imprensa, pela ciência, pelo Estado, por boa
parte das artes; em suma, é a variante das práticas culturais letradas, a
variante culta. A variante culta, mesmo não correspondendo exatamente à norma
gramatical, torna-se medida do erro e do acerto das demais variantes. Ora,
tomar o seu universo cultural como medida para avaliar a cultura do outro é...
em linguagem simples, preconceito.
Terceiro:
o desenvolvimento das capacidades de pensamento e raciocínio não está ligado às
variantes linguísticas. Bem verdade que a apropriação da língua é o que permite
aos seres humanos o desenvolvimento das funções psicológicas. Contudo, isso
pode ser feito em qualquer variante linguística. Em suma, é possível ser néscio
e obtuso em linguagem culta e ser muito inteligente em uma variante popular,
com pouco prestígio, e vice-versa. Aliás, filosofar em alemão, inglês, francês
ou russo, por exemplo, só foi possível porque em um dado momento as “línguas
bárbaras” foram tomadas pelos filósofos como línguas para a prática da cultura
letrada, desbancando o monopólio do velho latim.
Quarto:
é importante que a escola reconheça a validade relativa das variantes
linguísticas e, igualmente, a existência de uma variante culta. Para muitas
crianças originárias dos diversos segmentos das camadas populares de nosso
País, a língua da escola é uma língua estrangeira no sentido mais estrito do
termo: é língua do outro. Ora, se essa variante, culta e prestigiosa, impõe-se
como referência do falar certo, ela exerce, sim, sobre os falantes das outras
variantes, uma forma de violência simbólica que nega a validade e a
legitimidade do universo cultural dessas crianças e de suas famílias. O pacote
só é vendido inteiro: negar a validade das variantes linguísticas é negar a
diversidade cultural de nosso País e negar a cultura popular. Contudo, como
afirmamos logo no início, é papel da escola ensinar e assegurar a aprendizagem
da variante culta. Mas isso não precisa ser feito negando as demais. Pode ser
feito, simplesmente, estimulando a existência de cidadãos capazes de falar
múltiplas variantes, cidadãos “bilíngues” em sua própria língua.
Quinto:
a transposição didática dessas questões teóricas é importante, mas não é uma
tarefa simples, nem suficiente. Trata-se de algo que deve ser feito com
cuidado, sob o risco de aumentar os mal entendidos. O livro didático deve falar
para o aluno e para o professor, frequentemente pessoas que têm nele sua
principal fonte de formação e informação. A escrita didática, assim como todas
as formas de divulgação, inclusive a jornalística, é necessariamente
simplificadora. E aí está o coração do desafio. Deve-se ser teoricamente consistente, devem-se explicitar com
clareza e sem dubiedades os objetivos didáticos, em linguagem simples e
acessível a um público amplo, muito maior que o público leitor dos jornais de
grande circulação. Deve-se tentar ao máximo evitar o risco de ser mal entendido
– no caso, de “autorizar” ou “incentivar” a escola a não ensinar a variante
culta ou, ao contrário, reforçar os preconceitos contra as variantes
lingüísticas populares e os estigmas que pesam sobre os alunos de meios
desfavorecidos. É necessário reconhecer, então, que qualquer livro didático,
por melhor que seja, possui seus limites. Um deles reside na adequada formação
daqueles que os utilizam.
Por
fim, cabe-nos reconhecer que as principais decisões sobre a qualidade da
educação são de natureza política, mais que técnica. Envolvem disputas de poder
sobre os aspectos de nossa cultura que julgamos legítimos e que queremos que
sejam transmitidos às novas gerações. Em nosso caso, queremos um país culto e
culturalmente diversificado, um país cujos cidadãos se apropriem das formas
eruditas da cultura, mas que valorizem a riqueza de nossos legados culturais,
inclusive aqueles que nos ligam de modo intenso e vivo ao rico e complexo
universo da gente simples e da cultura inventiva de nosso povo."
*Presidente do conselho de administração do
Cenpec ** Pesquisador do Cenpec
Nenhum comentário:
Postar um comentário