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Coletânea de Memórias Literárias da Olimpíada


Parecida mas diferente
Zélia Gattai

O pai de Zélia Gattai costumava contar a história de como sua família havia vindo da Itália para o Brasil. Uma vez, quando ele narrava a viagem dos Gattai — que era o nome da família de seu pai —, Zélia, então menina, observou que Eugênio, seu avô materno, escutava atentamente. Então, pediu a ele que também contasse a história da família da mãe, os Da Col.
Vovô veio da Itália com toda a família, contratado como colono para colher café numa fazenda em Cândido Mota, em São Paulo. Nona Pina passou a viagem toda rezando, pedindo a Deus que permitisse chegarem com vida em terra. Tinha verdadeiro pavor de que um dos seus pudesse morrer em alto-mar e fosse atirado aos peixes. Carolina ressentiu-se muito da viagem, estranhou a alimentação pesada do navio, adoeceu, mas desembarcaram todos vivos no porto de Santos.

A família fora contratada por intermédio de compatriotas do Cadore, chegados antes ao Brasil. Diziam viver satisfeitos aqui e entusiasmavam os de lá através de cartas tentadoras: “Venham! O Brasil é a terra do futuro, a terra da ‘cucagna’... pagam bom dinheiro aos colonos, facilitam a viagem...”

Com os Da Col, no mesmo navio, viajaram outras famílias da região, todos na mesma esperança de vida melhor nesse país promissor. Viajaram já contratados, a subsistência garantida.

Em Santos, eram aguardados por gente da fazenda, para a qual foram transportados, comprimidos como gado num vagão de carga.

Ao chegar à fazenda, Eugênio Da Col deu-se conta, em seguida, de que não existia ali aquela “cucagna”, aquela fartura tão propalada. Tudo que ele idealizara não passava de fantasia; as informações recebidas não correspondiam à realidade: o que havia, isto sim, era trabalho árduo e estafante, começando antes do nascer do sol; homens e crianças cumpriam o mesmo horário de serviço. Colhiam café debaixo de sol ardente, os três filhos mais velhos os acompanhando, sob a vigilância de um capataz odioso. Vivendo em condições precárias, ganhavam o suficiente para não morrer de fome.

A escravidão já fora abolida no Brasil, havia tempos, mas nas fazendas de café seu ranço perdurava.

Notificados, certa vez, de que deviam reunir-se, à hora do almoço, para não perder tempo de trabalho, junto a uma frondosa árvore, ao chegar ao local marcado para o encontro os colonos se depararam com um quadro deprimente: um trabalhador negro amarrado à árvore. A princípio, Eugênio Da Col não entendeu nada do que estava acontecendo, nem do que ia acontecer, até divisar o capataz que vinha se chegando, chicote na mão. Seria possível, uma coisa daquelas? Tinham sido convocados, então, para assistir ao espancamento do homem? Não houve explicações. Para quê? Estava claro: os novatos deviam aprender como se comportar; quem não andasse na linha, não obedecesse cegamente ao capataz, receberia a mesma recompensa que o negro ia receber. Um exemplo para não ser esquecido.

O negro amarrado, suando, esperava a punição que não devia tardar; todos o fitavam, calados.

De repente, o capataz levantou o braço, a larga tira de couro no ar, pronta para o castigo. Então era aquilo mesmo? Revoltado, cego de indignação, o jovem colono Eugênio Da Col não resistiu; não seria ele quem presenciaria impassível ato tão covarde e selvagem.

Impossível conter-se!

Com um rápido salto, atirou-se sobre o carrasco, arrebatando-lhe o látego das mãos.

Apanhado de surpresa, diante da ousadia do italiano, perplexo, o capataz acovardou-se.

O chicote, sua arma, sua defesa a garantir-lhe a valentia, estava em poder do “carcamano”; valeria a pena reagir? Revoltado, fora de si, esbravejando contra o capataz em seu dialeto dos Montes Dolomitas, o rebelde pedia aos companheiros que se unissem para defender o negro. Todos o miravam calados. Será que não compreendiam suas palavras, seus gestos? Certamente sim, mas ninguém se atrevia a tomar uma atitude frontal de revolta. Católico convicto, ele fazia o que lhe ditava o coração, o que lhe aconselhavam os princípios cristãos...

De repente, como num passe de mágica, o negro viu-se livre das cordas que o prendiam à árvore. O capataz apavorou-se. Quem teria desatado os nós. Quem teria?
O topetudo não fora, estava ali em sua frente, gesticulando, gritando frases incompreensíveis, ameaçador, de chicote em punho... O melhor era desaparecer o quanto antes, rapidamente: “esses brutos poderiam reagir contra ele. A prudência mandava não facilitar”.
Nessa mesma tarde, a família Da Col foi posta na estrada, porteira trancada para “esses rebeldes imundos”. Estavam despedidos. Nem pagaram o que lhes deviam. “Precisavam ressarcir-se do custo do transporte de Santos até a fazenda...” E fim.
Pela estrada deserta e infinita, seguiu a família, levando as trouxas de roupas e alguns pertences que puderam carregar, além da honradez, da coragem e da fé em Deus.

Anarquistas, graças a Deus. 11ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1986.





Transplante de menina
Tatiana Belinky

[...] Depois do almoço, continuávamos o nosso turismo carioca. Papai e mamãe, mais o primo — feliz proprietário de uma “baratinha” — nos levavam, todos empilhados, a passear pela cidade do Rio de Janeiro. E foi assim que ficamos conhecendo o Morro da Urca e o Pão de Açúcar — ai, que emoção — pelo funicular, o “bondinho” pendurado entre aqueles enormes rochedos. E de onde se descortinava uma vista empolgante, só superada pela paisagem de tirar ainda mais o fôlego que se estendeu diante de nossos olhos, quando subimos — passageiros de outro trenzinho incrível, quase vertical — ao alto do Corcovado. Ali ainda não se erguia a estátua do Cristo Redentor, que é hoje o cartão-postal do Rio de Janeiro. Mas me parece que o panorama era, por estranho que pareça, bem mais “divino” ao natural, sem ela.
Fomos passear também na Gávea e na Avenida Niemeyer, ainda bastante deserta, e na Tijuca, com a sua floresta e a sua linda Cascatinha. “Cascatinha”, por sinal, era o nome da cerveja que papai tomava com muito gosto, enquanto nós, crianças, nos amarrávamos num refrigerante incrível que tinha o estranho nome de Guaraná.
Não deixamos de passear pelo centro da cidade, na elegantíssima Rua do Ouvidor, e na muito chique Cinelândia, em frente ao Teatro Municipal e suas escadarias, com seus bares e sorveterias na calçada. E, claro, na Avenida Rio Branco, reta, larga, e imponente, embicando no cais do porto, por onde chegamos ao Brasil pela primeira vez.
E foi nessa Avenida Rio Branco que tivemos a nossa primeira impressão — e que impressão! — do carnaval brasileiro. Eu já tinha ouvido falar em carnaval: na Europa, era famoso o carnaval de Nice, na França, com a sua decantada batalha de flores; e o carnaval de Veneza, mais exuberante, tradicional, com gente fantasiada e mascarada dançando e cantando nas ruas. E havia também os luxuosos, e acho que “comportados”, bailes de máscaras, em muitas capitais europeias. Eu já ouvira falar em fasching, carnevale, Mardi Gras — vagamente. Mas o que eu vi, o que nós vimos, no Rio de Janeiro, não se parecia com nada que eu pudesse sequer imaginar nos meus sonhos mais desvairados.
Aquelas multidões enchendo toda a avenida, aquele “corso” — o desfile interminável e lento de carros, para-choque com para-choque, capotas arriadas, apinhados de gente fantasiada e animadíssima. Todo aquele mundaréu de homens, mulheres, crianças, de todos os tipos, de todas as cores, de todos os trajes — todos dançando e cantando, pulando, saracoteando, jogando confetes e serpentinas que chegavam literalmente a entupir a rua e se enroscar nas rodas dos carros... E os lança-perfumes, que que é isso, minha gente! E os “cordões”, os “ranchos”, os “blocos de sujos” — e todo o mundo se comunicando, como se fossem velhos conhecidos, se tocando, brincando, flertando — era assim que se chamavam os namoricos fortuitos, a paquera da época —, tudo numa liberdade e descontração incríveis, especialmente para aqueles tempos tão recatados e comportados... Tanto que, ainda vários anos depois, uma marchinha carnavalesca falava, na sua letra alegremente escandalizada, da “moreninha querida... que anda sem meia em plena avenida”.
Ah, as marchinhas, as modinhas, as músicas de carnaval, maliciosas, buliçosas e engraçadas, algumas até com ferinas críticas políticas... E os ritmos, e os instrumentos — violões, cuícas (coisa nunca vista!), tamborins, reco-recos...
E finalmente, coroando tudo, as escolas de samba, e o desfile feérico dos enormes carros alegóricos das sociedades carnavalescas — coisa absolutamente inédita para nós — com seus nomes esquisitos, “Fenianos”, “Tenentes do Diabo” — cada qual mais imponente, mais fantástico, mais brilhante, mais deslumbrante, mais mirabolante — e, para mim, nada menos que acachapante!
E pensar que a gente não compreendia nem metade do que estava acontecendo! Todo aquele alarido, todas aquelas luzes, toda aquela agitação, toda aquela alegria desenfreada — tudo isso nos deixou literalmente embriagados e tontos de impressões e sensações, tão novas e tão fortes que nunca mais esqueci aqueles dias delirantes. Vi muitos carnavais depois daquele, participei mesmo de vários, e curti-os muito. Mas nada, nunca mais, se comparou com aquele primeiro carnaval no Rio de Janeiro, um banho de Brasil, inesquecível...
Transplante de menina. 3ª ed. São Paulo: Moderna, 2003.



Viver para contar

Gabriel García Marquez


Até a adolescência, a memória tem mais interesse no futuro que no passado, e por isso minhas lembranças da cidadezinha ainda não estavam idealizadas pela nostalgia. Eu me lembrava de como ela era: um bom lugar para se viver, onde todo mundo conhecia todo mundo, na beira de um rio de águas diáfanas que se precipitavam num leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. Ao entardecer, sobretudo em dezembro, quando passavam as chuvas e o ar tornava-se de diamante, a Serra Nevada de Santa Marta parecia aproximar-se com seus picos brancos até as plantações de banana, lá na margem oposta. Dali dava para ver os índios aruhacos correndo feito formiguinhas enfileiradas pelos parapeitos da serra [...]. Nós, meninos, tínhamos então a ilusão de fazer bolas com as neves perpétuas e brincar de guerra nas ruas abrasadoras. Pois o calor era tão inverossímil, sobretudo durante a sesta, que os adultos se queixavam dele como se fosse uma surpresa a cada dia. Desde o meu nascimento ouvi repetir, sem descanso, que as vias do trem de ferro e os acampamentos da United Fruit Company foram construídos de noite, porque de dia era impossível pegar nas ferramentas aquecidas pelo sol.


Gabriel García Marquez. Viver para contar. Rio de Janeiro: Record, 2003.






Minha vida de menina
Helena Morley

Quarta-feira, 28 de agosto (de 1895).
Faço hoje quinze anos. Que aniversário triste!
Vovó chamou-me cedo, ansiada como está, coitadinha, e deu-me um vestido. Beijou-me e disse: “Sei que você vai ser sempre feliz, minha filhinha, e que nunca se esquecerá de sua avozinha que lhe quer tanto”. As lágrimas lhe correram pelo rosto abaixo e eu larguei dos braços dela e vim desengasgar-me aqui no meu quarto, chorando escondida.
Como eu sofro de ver que mesmo na cama, penando com está, vovó não se esquece de mim e de meus deveres e que eu não fui o que devia ter sido para ela! Mas juro por tudo, aqui nesta hora, que vovó melhorando eu serei um anjo para ela e me dedicarei a esta avozinha tão boa e que me quer tanto.
Vou agora entrar no quarto para vê-la e já sei o que ela vai me dizer: “Já estudou suas lições? Então vá se deitar, mas procure antes alguma coisa para comer. Vá com Deus”.
Minha vida de menina. São Paulo: Companhia das Letras, 1942.





Mercador de escravos
Alberto da Costa e Silva

“Quando eu morei na Nigéria, ouvi de vários descendentes de ex-escravos retornados do Brasil que seus antepassados trouxeram consigo, um saquinho de ouro em pó. E que os menos afortunados desembarcavam em Lagos com os instrumentos de seu ofício e alguns rolos de tabaco, mantas de carne-seca e barriletes de cachaça, para com eles reiniciar a vida. É provável que tenha sido também assim, com seu contrabando de ouro ou o seu tanto de fumo e jeritiba, que alguns dos traficantes brasileiros instalados no golfo do Benin começaram os seus negócios.
Não foi este, porém, ao que parece, o caso de Francisco Félix de Souza. A menos que estivesse mentindo, quando disse ao reverendo Thomas Birch Freeman que chegara à Costa sem um tostão e que foram de indigência os seus primeiros dias africanos - confissão corroborada por um parágrafo de Theophilus Conneau, no qual se afirma que Francisco Félix começou a carreira a sofrer privações e toda a sorte de problemas. Outro contemporâneo, o comandante Frederick E. Forbes, foi menos enfático, porém claro: Francisco Félix era um homem pobre, quando desceu na África.
Que ele tenha, de início, como declarou, conseguido sobreviver com os búzios que furtava dos santuários dos deuses, não é de estranhar-se. Os alimentos eram muito baratos naquela parte do litoral. Numa das numerosíssimas barracas cobertas de palha do grande mercado de Ajudá, recebia-se da vendedora, abrigada sob o teto de palha ou sentada num tamborete atrás do trempe com seu tacho quente, um naco de carne salpicado de malagueta contra dois ou três cauris. Custava outro tanto um bocado de inhame, semienvolto num pedaço de folha de bananeira e encimado por lascas de peixe seco. E talvez se obtivesse por uma só conchinha um acará.
Francisco Félix de Souza, mercador de escravos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Editora da UERJ, 2004.







Por parte de pai
(Oficina 3)
Bartolomeu Campos Queirós

Minha cama ficava no fundo do quarto. Pelas frestas da janela soprava um vento resmungando, cochichando, esfriando meus pensamentos, anunciando fantasmas. As roupas, dependuradas em cabides na parede, se transfiguravam em monstros e sombras. Deitado, enrolado, parado imóvel, eu lia recado em cada mancha, em cada dobra, em cada sinal. O barulho do colchão de palha me arranhava. O escuro apertava minha garganta, roubava meu ar. O fio da luz terminava amarrado na cabeceira do catre. O medo assim maior do que o quarto me levava a apertar a pera de galalite e acender a luz, enfeitada com papel crepom. O claro me devolvia as coisas em seus tamanhos verdadeiros. O nariz do monstro era o cabo do guarda-chuva, o rabo do demônio o cinto do meu avô, o gigante, a capa “Ideal” cinza para os dias de chuva e frio. Então, procurava distrair meu pavor decifrando os escritos na parede, no canto da cama, tão perto de mim. Mas era minha a dificuldade de acomodar as coisas dentro de mim. Sobrava sempre um pedaço...
Por parte de pai. Belo Horizonte: RHJ, 1995.







Galinha ao molho pardo
Fernando Sabino

Ao chegar da escola, dei com a novidade: uma galinha no quintal.
O quintal de nossa casa era grande, mas não tinha galinheiro, como quase toda casa de Belo Horizonte naquele tempo. Tinha era uma porção de árvores: um pé de manga sapatinho, outro de manga coração-de-boi, um pé de gabiroba, um pé de goiaba branca, outro de goiaba vermelha, um pé de abacate e até um pé de fruta-de-conde. [...] De um lado o barracão com o quarto da Alzira cozinheira e um quartinho de despejo. Do outro lado, uma caixa de madeira grande como um canteiro, cheia de areia que papai botou lá para nós brincarmos. [...]
Pois no fundo do quintal que eu vi a galinha, toda folgada, ciscando na caixa de areia. Havia sido comprada por minha mãe para o almoço de domingo: Dr. Junqueira ia almoçar em casa e ela resolveu fazer galinha ao molho pardo.
Eu já tinha visto a Alzira matar galinha, uma coisa terrível. Agarrava a coitada pelo pescoço, agachava, apertava o corpo dela entre os joelhos, torcia com a mão esquerda a cabecinha assim para um lado, e com a direita, zapt! passava o facão afiado, abrindo um talho no gogó. O sangue esguichava longe. Ela aparava logo o esguicho com uma bacia, deixando que escorresse ali dentro até acabar. E a bichinha ainda viva, estrebuchando nas mãos da malvada.
Como se fosse a coisa mais natural deste mundo, a Alzira me contou o que ia acontecer com a nova galinha.
Revoltado, resolvi salvá-la.
Eu sabia que o Dr. Junqueira era importante, meu pai dependia dele para uns negócios. Pois no que dependesse de mim, no domingo ele ia poder comer tudo, menos galinha ao molho pardo.
Era uma galinha branca e gorda, que não me deu muito trabalho para pegar. Foi só correr atrás dela um pouco, ficou logo cansada. Agachou-se no canto do muro, me olhou de lado como as galinhas olham e se deixou apanhar.
Não sei se percebeu que eu não ia lhe fazer mal. Pelo contrário, eu pretendia salvar a sua vida. O certo é que em poucos minutos ficou minha amiga, não fugiu mais de mim.
— O seu nome é Fernanda — falei então. [...]
— Vou esconder você num lugar que ninguém é capaz de descobrir.
Junto do tanque de lavar roupa costumava ficar uma bacia grande de enxaguar. A Maria lavadeira só ia voltar na segunda-feira. Antes disso ninguém ia mexer naquela bacia. Assim que escureceu, escondi a Fernanda debaixo dela.
[...] Na manhã de domingo me levantei bem cedo e fui dar uma espiada na Fernanda.
[...] Lá do fundo escuro do porão, onde tinha ido me esconder, vi a Alzira olhar ao redor:
— Por falar nisso, onde é que se meteu a galinha? [...]
— Você não estava brincando com ela ontem, menino?
— Isso foi ontem. Hoje eu não vi ela ainda.
— Será que fugiu? Ou alguém roubou? [...]
Agarrei a ideia no ar, era a salvação:
— Isso mesmo! Quando eu estava ali no quintal vi um homem passar correndo... Levava uma coisa escondida embaixo do paletó. Só podia ser a galinha.
A Alzira não parecia acreditar muito na história. Pelo contrário, ficou mais desconfiada.
[...] E saiu pelo quintal, à procura da galinha, olhando aqui e ali: nos galhos das árvores, atrás do barracão, no meio dos bambus. Depois foi contar para mamãe que a galinha havia sumido.
Fui atrás, para o que desse e viesse. Escutei tudo. Mamãe torcia as mãos:
— E agora, como vai ser? Como é que ela foi sumir assim, sem mais nem menos?
— Sei lá — respondeu a Alzira: — Não acredito que tenham roubado, como diz o Fernando. Vai ver que saiu voando e pulou o muro. Bem que pensei em cortar as asas dela e me esqueci. Agora é tarde.
— Está quase na hora do almoço — disse minha mãe: — O Dr. Junqueira está para chegar em uma hora, e como é que a gente vai fazer sem a galinha? O Domingos vai ficar aborrecido.
Dali a pouco era o meu pai quem chegava da rua, trazendo o jornal de domingo debaixo do braço. Quando mamãe lhe deu a triste notícia, para surpresa minha e dela, ele não se aborreceu:
— Faz outra coisa. Macarrão, por exemplo. O Dr. Junqueira é bem capaz de gostar de macarrão.
[...] Pois o Dr. Junqueira não só gostou, como repetiu duas vezes, para grande satisfação de mamãe. [...] Guardanapo enfiado no colarinho, o Dr. Junqueira limpou os bigodes, satisfeito:
— Ainda bem que era essa macarronada tão boa. Eu estava com medo que fosse galinha. Se tem uma coisa que eu detesto é galinha. Principalmente ao molho pardo.
Nem por isso senti que minha amiga Fernanda não estava mais condenada à morte. Mesmo porque, meu pai gostava também de galinha, com ou sem o Dr. Junqueira. Por outro lado, ela podia ficar escondida o resto da vida (eu não tinha a menor ideia de quanto tempo vivia uma galinha). E na manhã seguinte a Maria viria lavar roupa, ia descobrir a Fernanda encolhida debaixo da bacia.
Depois que o almoço terminou e o Dr. Junqueira se despediu, fui lá perto do tanque fazer uma visitinha a ela, resolvido a ganhar tempo:
— Você hoje ainda vai dormir aí, mas amanhã eu te solto, está bem?
Ela fez que sim com a cabeça. [...]
De manhãzinha, antes que a Maria lavadeira chegasse, fui até lá, levantei a bacia e peguei a Fernanda, procurei mamãe com ela debaixo do braço:
— Olha só quem está aqui.
Mamãe se espantou:
— Uai, ela não tinha sumido? Onde é que você encontrou essa galinha, Fernando?
De repente seus olhos se apertaram num jeito muito dela, quando entendia as coisas: havia entendido tudo. Antes que me passasse um pito, eu avisei:
— Se tiverem de matar a minha amiga, me matem primeiro.
Mamãe achou graça quando soube que ela se chamava Fernanda e resolveu não se importar com o que eu tinha feito, pelo contrário: deixou que a galinha passasse a ser um de meus brinquedos. Só proibiu que eu a levasse para dentro de casa. Fernanda me seguia os passos por toda parte, como um cachorrinho.
E ela continuou minha amiga, até morrer de velha, não sei quanto tempo mais tarde.
Só sei que alguns dias depois do almoço do Dr. Junqueira, mamãe comprou um frango.
— Esse vai se chamar Alberto — eu disse logo.
— Pois sim — disse minha mãe, e mandou que a Alzira tomasse conta do frango.
No dia seguinte mesmo, no almoço, comemos o Alberto. Ao molho pardo.
O menino no espelho. Rio de Janeiro: Record, 1992.







O valetão que engolia meninos e outras histórias de Pajé
Kelli Carolina Bassani

Já foram escritas muitas histórias da época em que os meninos engraxates eram engolidos pelo valetão da Rua Sete de Setembro. Mas nenhuma delas conta esta ou outras histórias de Pajé. Guardo-as dentro do peito, como boas lembranças da rua onde vivi e que teimam em se misturar com a história da cidade.
Nascemos juntos: eu, a rua e essas histórias. Somos uma coisa só, mas nós não estamos nos livros. Estamos na contramão, por isso me atrapalho com as palavras. Às vezes falta ar, outras o ar é demais, então o meu coração acelera, o nó na garganta avisa: o menino Pajé vai acordar!
Hoje, quem não conhece a Rua Sete de Setembro é porque não conhece minha cidade — Toledo. Apertada entre outras no extremo oeste paranaense, bem pertinho do Paraguai, surgiu de uma clareira no meio da mata.
Naquele tempo, uma clareira; hoje, Rua Sete de Setembro. Essa rua foi crescendo e acolhendo o progresso que tenta esconder e aprisionar as histórias de Pajé. Elas estão descansando embaixo do calçamento, dos asfaltos, dos prédios, das casas. Basta um sinal que elas voltam.
Cheiro de terra molhada — esse era o sinal. E, ainda hoje, sinto esse cheiro entrando no meu cérebro e mexendo com o meu coração. Naquele tempo bastava sentir o cheiro de terra molhada para que nós, os meninos engraxates, escondêssemos nossas engraxadeiras — caixa de madeira em que se guardava o material necessário para engraxar sapatos — no porão dos fundos da bodega do Pizetta e, como garotos matreiros, saíssemos de mansinho, sem despertar curiosidade. Corríamos lá embaixo, no começo da rua que embicava no meio da mata, pois o mistério ia começar!
A chuva caía e formava muita enxurrada que, com sua força, trazia a terra misturada. Parecia uma cascata de chocolate que despencava no valetão — buraco muito profundo provocado pelas enxurradas, erosão. A água fresquinha que caía do céu misturava com a terra quente e provocava o mistério. Nós éramos puxados para dentro daquele enorme buraco por uma força estranha sem dó. Mesmo os que não queriam não conseguiam resistir, porque a magia era muito forte e, em poucos segundos, estávamos lá dentro, na garganta do valetão, onde brincávamos durante horas. Nessas horas o trabalho era esquecido.
Quando eu era menino, trabalhava muito. Todos os dias de manhã ia à escola e, ao retornar, mal acabava de almoçar, pegava a engraxadeira, colocava nas costas para a rua, quer dizer, para o trabalho. A engraxadeira era muito grande e pesada para meu tamanho — eu era apenas um garoto! Mas era a única forma de ajudar minha mãe no sustento da família.
Sentia como se estivesse carregando o mundo sozinho.
Hoje sou adulto e sei que aquela magia era fruto de nossa fantástica imaginação. Como qualquer outro menino, o engraxate também tinha direito de brincar. Uma das poucas vezes em que podíamos fazer isso era quando chovia. Mesmo que depois nos custasse castigos e surras.
Atualmente, as brincadeiras, comparadas com as de meu tempo, são muito diferentes. Hoje, os heróis são Superman, Batman, Homem-Aranha. Antes tínhamos heróis indígenas, com suas histórias cheias de mistérios das florestas.
Naquele tempo, quando chovia, o valetão da Rua Sete de Setembro era nosso mundo fantástico. Além das divertidas brincadeiras no lamaçal que escorria da rua, fazíamos cabanas no paredão da erosão, guerrilhas com bodoque, usando sementes de árvores como cinamomo e mamona.
Quando não chovia, sobrava tempo para brincar só aos domingos. Então, eu — Pajé — e minha turma nos reuníamos na mata, que se misturava com o terreiro das casas.
Nele, construíamos cabanas, arcos, flechas, tacapes. Pintávamos o corpo todo com barro e frutinhas da mata. Assim, sentindo-nos como heróis, brincávamos de índios guerreiros, até o sol se esconder.
Nossa vida se enchia dos poderes que vinham da mata e seguia solta, como passarinho. O fim da história? Não sei não, porque eu ainda vivo. E enquanto eu viver as lembranças nunca vão terminar.
Aluna finalista da 3a edição do Prêmio Escrevendo o Futuro, em 2006, 4ª série da E.M.E.I.E.F. Walter Fontana, Toledo - PR.






Por parte de pai
(Oficina 5)
Bartolomeu Campos Queirós

Debruçado na janela meu avô espreitava a rua da Paciência, inclinada e estreita. Nascia lá em cima, entre casas miúdas e se espichava preguiçosa, morro abaixo. Morria depois da curva, num largo com sapataria, armazém, armarinho, farmácia, igreja, tudo perto da escola Maria Tangará, no Alto de São Francisco.
[...] Eu brincava na rua, procurando o além dos olhos, entre pedras redondas e irregulares calçando a rua da Paciência. Depois das chuvas, essas pedras centenárias, cinza, ficavam lisas e limpas, cercadas de umidade e areia lavada. Nas enxurradas desciam lascas de malacheta brilhando como ouro e prata, conforme a luz do sol.
[...] Meu avô, pela janela, me vigiava ou abençoava, até hoje não sei, com seu olhar espantado de quem vê cada coisa pela primeira vez. E aqueles que por ali passavam lhe cumprimentavam: “Oi, seu Queirós”. Ele respondia e rimava: “Tem dó de nós”. Minha avó, assentada na sala, fazendo bico de crochê em pano de prato, não via a rua.
[...] O café, colhido no quintal da casa, dava para o ano todo, gabava meu avô, espalhando a colheita pelo chão de terreiro, para secar. O quintal se estendia para muito depois do olhar, acordando surpresa em cada sombra. Torrado em panela de ferro, o café era moído preso no portal da cozinha. O café do bule era grosso e forte, o da cafeteira, fraco e doce. Um para adultos e outro para crianças. O aroma do café se espalhava pela casa, despertando a vontade de mastigar queijo, saborear bolo de fubá, comer biscoito de polvilho, assado em forno de cupim. [...] Minha avó, coado o café, deixava o bule e a cafeteira sobre a mesa forrada com toalha de ponto cruz, e esperava as quitandeiras.
Tudo se comprava na porta: verduras, leite, doces, pães. Com a caderneta do armazém comprava-se o que não podia ser plantado em casa. No final do mês, ao pagar a conta ganhava-se uma lata de marmelada.
Depois do cafezal, na divisa com a serra, corria o córrego, fino e transparente. Tomávamos banho pelados, até a ponta dos dedos ficarem enrugadas. Meu avô raras vezes, nos fazia companhia.
[...] Meu avô conhecia o nome de todas as frutas. Na hora de voltar, ele trazia, se equilibrando pelos caminhos, uma lata de areia para minha avó arear as panelas de ferro.
[...] Atrás da horta havia chiqueiro onde três ou quatro porcos dormiam e comiam, sem desconfiar do futuro. Se eu fosse porco não engordava nunca, imaginava. Ia passar fome, fazer regime, para continuar vivendo.
[...] Meu avô convidou, naquela tarde, para me assentar ao seu lado nesse banco cansado. Pegou minha mão e, sem tirar os olhos do horizonte, me contou:
O tempo tem uma boca imensa. Com sua boca do tamanho da eternidade ele vai devorando tudo, sem piedade. O tempo não tem pena. Mastiga rios, árvores, crepúsculos. Tritura os dias, as noites, o sol, a lua, as estrelas. Ele é o dono de tudo. Pacientemente ele engole todas as coisas, degustando nuvens, chuvas, terras, lavouras. Ele consome as histórias e saboreia os amores. Nada fica para depois do tempo.
As madrugadas, os sonhos, as decisões, duram na boca do tempo. Sua garganta traga as estações, os milênios, o ocidente, o oriente, tudo sem retorno. E nós, meu neto, marchamos em direção à boca do tempo.
Meu avô foi abaixando a cabeça e seus olhos tocaram em nossas mãos entrelaçadas. Eu achei serem pingos de chuva as gotas rolando sobre meus dedos, mas a noite estava clara, como tudo mais.
Por parte de pai. Belo Horizonte: RHJ, 1995.







Meus tempos de criança
Rostand Paraíso

Pulávamos os muros e ganhávamos os quintais das casas vizinhas, enormes e cheias de fruteiras e de toda a sorte de animais, gatos, cachorros, galinhas, patos, marrecos e outros mais. Chupando mangas, gostosas mangas, mangas-espada, mangas-rosa e manguitos, esses quase sempre os mais saborosos, dividíamos os times e organizávamos as peladas de fundo de quintal que exigiam grande malabarismo de nossa parte, com as frondosas árvores para driblar e grandes irregularidades no terreno para contornar.
Usávamos “bolas de meias”, preparadas por nós mesmos com papel de jornal compactado e colocado dentro de uma meia de mulher, mas já começávamos a usar bolas de borrachas e as “bolas-de-pito”, que eram bolas de couro, com pito para fora e que tínhamos o cuidado de envergar para dentro, para evitar arranhaduras.
Gostosas, memoráveis tardes que se prolongavam até a noitinha, parando-se apenas quando não havia mais sol e quando não podíamos mais ignorar os gritos que vinham de nossa casa, para tomar banho, mudar de roupa e ir jantar.
As mesmas misteriosas ordens faziam-nos começar a desengavetar nossos times de botão para a temporada que iria se iniciar. Os botões eram polidos e engraxados.
Descobríamos, nos botões das capas e dos jaquetões e, também, nas tampas de remédios, promissores craques. Nossos pais começavam a estranhar, sem encontrar qualquer explicação para o fato, o desaparecimento das tampas dos xaropes e dos botões das roupas. Esses craques em potencial, novos valores que surgiam, eram devidamente preparados e passávamos dias a lixá- los e, para lhes dar mais peso e maior aderência à mesa, a enchê-los com parafina derretida. Trabalho que levava às vezes algumas semanas, os novos craques sendo testados exaustivamente até que nos déssemos por satisfeitos e os considerássemos prontos e aprovados para as grandes competições pela frente.
Os botões de chifre, preparados pelos presos da Casa de Detenção, onde íamos comprá-los, começavam, pela sua robustez e pela potência de seus chutes, a ganhar nossa preferência. Não gostávamos, porém, daqueles botões que vinham do Sul, de plástico, todos iguais, diferençando-se uns dos outros apenas pelas “camisas” que traziam coladas sobre si, com as cores dos clubes cariocas. Preferíamos, nós mesmos, pregar as cores do nosso time preferido, no meu caso o Santa Cruz.
Cada botão ganhava seu nome, Perácio, Leônidas, Patesko, Pitota, Sidinho, Siduca... botões que já não tenho mais, desaparecidos misteriosamente ao longo do tempo. Meu ponta-esquerda, Tarzan, que tantas alegrias me deu, com suas arrancadas para o campo adversário e com seus mirabolantes gols, que fim terá levado?
Preferíamos usar as bolas de farinha, arredondadas cuidadosamente na palma da mão e que permitiam um bom controle, correndo menos que as de miolo de pão e não tanto quanto as de borracha.
Dentro daquelas regras que adotávamos e que permitiam que continuássemos a jogar enquanto não perdêssemos o controle da bola, éramos obrigados, quando nos sentíamos em condições de tentar o chute a gol, a avisar o adversário: “Defenda-se!” ou “Prepare-se!”, dando tempo a que ele posicionasse melhor o seu goleiro e puxasse, para junto dele, os beques, geralmente bem altos, com a finalidade de dificultar o chute rasteiro.
As partidas eram irradiadas por um de nós, ao estilo de José Renato, o famoso locutor esportivo da PRA-8, e os gols, quando convertidos, eram gritados histericamente, incomodando toda a vizinhança.
Antes que o tempo apague… 2ª ed. Recife: Editora Comunicarte, 1996.






Os automóveis invadem a cidade
Zélia Gattai

Naqueles tempos, a vida em São Paulo era tranquila. Poderia ser ainda mais, não fosse a invasão cada vez maior dos automóveis importados, circulando pelas ruas da cidade; grossos tubos, situados nas laterais externas dos carros, desprendiam, em violentas explosões, gases e fumaça escura. Estridentes fonfons de buzinas, assustando os distraídos, abriam passagem para alguns deslumbrados motoristas que, em suas desabaladas carreiras, infringiam as regras de trânsito, muitas vezes chegando ao abuso de alcançar mais de 20 quilômetros à hora, velocidade permitida somente nas estradas. Fora esse detalhe, o do trânsito, a cidade crescia mansamente. Não havia surgido ainda a febre dos edifícios altos; nem mesmo o “Prédio Martinelli” - arranha-céu pioneiro em São Paulo, se não me engano do Brasil - fora ainda construído. Não existia rádio, e televisão, nem em sonhos. Não se curtia som em aparelhos de alta-fidelidade. Ouvia-se música em gramofones de tromba e manivela. Havia tempo para tudo, ninguém se afobava, ninguém andava depressa. Não se abreviavam com siglas os nomes completos das pessoas e das coisas em geral. Para que isso? Por que o uso de siglas? Podia-se dizer e ler tranquilamente tudo, por mais longo que fosse o nome por extenso - sem criar equívocos - e ainda sobrava tempo para ênfase, se necessário fosse.
Os divertimentos, existentes então, acessíveis a uma família de poucos recursos como a nossa, eram poucos. Os valores daqueles idos, comparados aos de hoje, no entanto, eram outros; as mais mínimas coisas, os menores acontecimentos, tomavam corpo, adquiriam enorme importância. Nossa vida simples era rica, alegre e sadia. A imaginação voando solta, transformando tudo em festa, nenhuma barreira a impedir meus sonhos, o riso aberto e franco. Os divertimentos, como já disse, eram poucos, porém suficientes para encher o nosso mundo.
Anarquistas, graças a Deus. 11a ed. Rio de Janeiro: Record, 1986.






Por parte de pai
(Oficina 8)
Bartolomeu Campos Queirós

Em casa de meu pai, todas as noites, eu resmungava pedindo água. Era uma sede com hora marcada. Minha mãe já não se movia muito, entre dores, passava as noites em claro, controlando gemidos. Meu pai se levantava e ia até minha cama. Fechava a mão em forma de copo, levantava a minha cabeça com a outra, e fazia gute, gute. Eu bebia sua mentira e dormia feliz. Não, meu pai não economizava água. Ele era mão-aberta e nunca chegava, agora em raras viagens, sem pequenos presentes. Ele os esquecia sobre a mesa e ficava distraído, esperando elogios.
Engraçado, na casa do meu avô eu não sentia sede, nem de madrugada, quando os galos me acordavam junto com a manhã e eu ficava esperando o cheiro do café me tirar da cama. No meio da noite, se a tempestade rompia o silêncio do escuro, meu avô vinha até meu quarto. Abria a porta de manso, para verificar se a chuva do vento não estava entrando na janela, e benzia meus sonhos. Então, com a mão muito branda, arrumava meus lençóis e deixava um recado em minha testa, uma certa bênção leve como os gatos. Também meu avô era econômico nos carinhos e tímido nos gestos. Nessa hora, quando os raios esfaqueavam o resto da noite, enrolado em meus pensamentos eu me esforçava para perdoar meu avô por não amar os gatos.
Por parte de pai. Belo Horizonte: RHJ, 1995.






O Lavador de Pedra
Manoel de Barros

A gente morava no patrimônio de Pedra Lisa. Pedra Lisa era um arruado de 13 casas e o rio por detrás. Pelo arruado passavam comitivas de boiadeiros e muitos andarilhos. Meu avô botou uma Venda no arruado. Vendia toucinho, freios, arroz, rapadura e tais. Os mantimentos que os boiadeiros compravam de passagem. Atrás da Venda estava o rio. E uma pedra que aflorava no meio do rio. Meu avô, de tardezinha, ia lavar a pedra onde as garças pousavam e cacaravam. Na pedra não crescia nem musgo. Porque o cuspe das garças tem um ácido que mata no nascedouro qualquer espécie de planta. Meu avô ganhou o desnome de Lavador de Pedra. Porque toda tarde ele ia lavar aquela pedra.
A Venda ficou no tempo abandonada. Que nem uma cama ficasse abandonada. É que os boiadeiros agora faziam atalhos por outras estradas. A Venda por isso ficou no abandono de morrer. Pelo arruado só passavam agora os andarilhos. E os andarilhos paravam sempre para uma prosa com o meu avô. E para dividir a vianda que a mãe mandava para ele. Agora o avô morava na porta da Venda, debaixo de um pé de jatobá. Dali ele via os meninos rodando arcos de barril ao modo que bicicleta. Via os meninos em cavalo de pau correndo ao modo que montados em ema. Via os meninos que jogavam bola de meia ao modo que de couro. E corriam velozes pelo arruado ao modo que tivessem comido canela de cachorro. Tudo isso mais os passarinhos e os andarilhos era paisagem do meu avô. Chegou que ele disse uma vez: Os andarilhos, as crianças e os passarinhos têm o dom de ser poesia. Dom de ser poesia é muito bom!
Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta do Brasil, 2003.





As almas do Amém
Ilka Brunhilde Laurito

Naquela grande casa de pedra em que vovô Vincenzo e vovó Catarina moravam, ali na rua dos Anjos, havia uma escadinha misteriosa que subia de uma das grandes salas e que parava numa porta sempre trancada. Se escada tivesse nariz, eu poderia dizer que ela batia com o nariz na porta. A porta do sótão.
Ao perguntar para minha avó:
— Posso entrar lá?...
... ela me respondia:
— Não, Fortunatella. Criança não entra lá.
Lá, me parecia um lugar assombrado e perigoso. Por isso mesmo fascinante. [...]
Uma vez por semana, vovô Vincenzo reunia à noitinha todos os netos [...]. Ele puxava um grande terço de madeira e começava a rezar. Todo mundo rezava junto com ele e, ao final, um vibrante coro dizia bem alto: AMÈM! Ao ouvir esse amém final e triunfante, vovô Vincenzo erguia as mãos para o céu e encomendava o terço para as almas daqueles que já haviam morrido [...].
Pois naquela noite iluminada, quando vovô fechou o coro do terço, erguendo as mãos e os olhos para o alto, tive a certeza: quem morava no sótão eram as almas do AMÉM! [...]
Um dia porém — e sempre, em toda história, há o dia de um porém —, prima Rina [...] perguntou-me de súbito:
Fortunatella, o que é que o vovô guarda de bom lá no sótão, hein?
Ofendida, respondi-lhe mais que depressa:
— Vovô não guarda nada LÁ dentro. LÁ moram as almas do AMÉM, que guardam a casa de dia e de noite, principalmente de noite.
Rina soltou uma grande gargalhada e me chamou de boba, desafiando-me:
— Pois você vá LÁ visitar essas almas, que terá uma grande surpresa.
Eu não aguentava desafios. E não sosseguei enquanto não me vi sozinha em casa, apertando nas mãos a chave do sótão, que a vovó guardava dentro de um vaso. Subi devagarinho e com o coração assustado aquela escadinha que ia dar com o nariz na porta. E, quando a abri, pus meu nariz no escuro. [...]
Procurando a janela, percebi uma fresta de luz escorrendo de um quadrado de madeira. Escancarei-o, e a janelinha se debruçou sobre os telhados da casa de Rina. Voltei-me para olhar para dentro do sótão em que deviam dormir as almas do AMÉM! [...] O que ali estava, pendendo do teto, ou muito bem armazenados em caixas e sacos, eram salames, azeitonas, queijos duros, figos secos, nozes, avelãs, amêndoas e mais um monte de coisas gostosas que minha avó Catarina fazia subir pela escadinha toda vez que ia até o sótão. Era ali o estoque de alimentos para os dias de inverno, quando o frio enregelava os campos e não havia colheita. Era a comida para os corpos do AQUI. [...]
Eu logo achei que vovô Vincenzo e vovó Catarina não se importariam se eu distribuísse o estoque entre os netos. E me preparei para fazer escorregar para o telhado vizinho metade daqueles alimentos que meus avós haviam armazenado com tanto sacrifício para os dias difíceis.
Eu disse “me preparei”. Porque uma comadre que passava pela rua, ouvindo risadinhas sobre os telhados vizinhos, correu a chamar vovó, que estava na Igreja de San Leone, lá na praça da Acquanova. [...]
Vovó Catarina levou um susto, mas me perdoou [...].
E foi assim que acabei descobrindo que, quando vovô Vincenzo acabava o terço e erguia as mãos para o teto, talvez estivesse pedindo às almas do AMÉM que velassem pela fartura dos campos da Calábria e que nunca deixassem faltar o pão e o vinho sobre as mesas a fim de que nenhum calabrês, nunca mais, precisasse emigrar para terras alheias.
A menina que fez a América. São Paulo: FTD, 2002.






Como num filme
Antonio Gil Neto

Não foi difícil cair nas graças de Seu Amalfi. Direto, sincero, amoroso, foi logo falando de sua vida, com um jeito meio solto, especial, como quem vai montando uma sequência de cenas em nosso pensamento. De início, estáticas e em preto e branco, e, aos poucos, em impulsos coloridos. Depois de uma ou outra pergunta, quase nem precisei falar mais nada. Apenas ouvir, entregar-se à brincadeira da memória era o que bastava.
Ele foi contando, contando e imagens foram se instalando em mim como quem entra em um filme.
“Esse cheirinho de café pendurado no vento leve conduz a meu tempo mais antigo.
Pensei ouvir bem baixinho um fiapo de uma canção napolitana e tudo veio à tona. Logo lembrei-me de minha mãe torrando café, fazendo o pão, a macarronada. Bem que procuro não pensar muito para não marejar os olhos.
O começo de tudo foi na Itália. De lá vieram meus pais. Fugidos do horror da guerra, acabaram por fazer a vida aqui em São Paulo, onde nasci.
É a partir dessas lembranças que minha cabeça parece uma máquina de fabricar filmes.
Recordo muita coisa. Não só do que minha mãe contava, mais ainda das que eu vivi.
Lá pelos idos de 1929, com cerca de sete anos de idade, era menino feito. Minha vida era um misto de cowboy com Tarzan. Onde hoje fica o Shopping Center Norte era só mato, água e muita, muita terra. Era lá meu paraíso. Meu e dos meus amigos: o Vitorino, o Zacarias... Vivia para jogar futebol, nadar, pescar e caçar passarinhos.
Uma brincadeira de que gostávamos muito era ‘chocar o trem’. Sabe o que é isso?
Era subir rapidinho no trem em movimento. Ele andava bem devagar, é claro, levando pedras da Serra da Cantareira para construir a cidade. Com o tempo seu trajeto se encheu de bairros: Tucuruvi, Jaçanã, Vila Mazzei, Água Fria e mais o que há agora. Lembra aquela música do Adoniran? Tem a ver com esse trem...
Da escola não gostava tanto. Não era um bom aluno, mas era esperto, vivido. Isso sim. O que acabava ajudando em muitas situações... Em um abrir e fechar dos olhos da memória lá estão a escola, o corre-corre das crianças e todos eles intactos e em plena labuta do dia: Dona Albertina, Dona Isabel, Seu Luís, os professores. Ainda o Seu Peter, o diretor, e Seu Luigi, o servente. Quantas vezes em meio à cópia da lousa, que seguia plena em silêncio e dever, disparava um piscar enviesado para meus companheiros de time. Quebrávamos as pontas dos lápis e com o descaramento e a falsa pretensão de deixarmos todos eles apontadinhos para a letra ficar bem desenhada e bem bonita nas nossas brochuras, lá íamos nós, atrás da porta e com a gilette em punho, armar em cochichos a melhor estratégia para o próximo jogo. Tudo lorota!
Meio moleque, meio mocinho, sempre dava algum jeito de arranjar um dinheirinho para ir à Voluntários, uma das poucas ruas calçadas do bairro, nas matinês do cine Orion.
Meu figurino era feito por minha mãe: uma camisa clara, bem limpa e passadinha com ferro de brasa. Com meus colegas ia ver o que estava em cartaz. Bangue-bangue era o melhor. Lembro-me do Buck Jones, do Rin Tin Tin, do Roy Rogers e mais uma porção daqueles bambas do momento. Também me recordo do cine Vogue e de Seu Carvalho, seu dono e operador, que, ao constatar a enorme fila na bilheteria, dizia para nós, garotos, com certo orgulho solene, só haver lugares em pé. Entrávamos mesmo assim. Depois de alguns minutos já tínhamos nossos lugares escolhidos e... sentados. No escurinho do filme começado, queimávamos um barbante malcheiroso que fazia todo mundo desaparecer de nosso lugar preferido. Comédia pura, não é?
Com o passar dos anos, veio o tempo do trabalho para valer. De aprendiz de químico tornei-me o titular na fábrica de perfumes dos libaneses. Fiz de tudo lá: brilhantina, rouge, pó de arroz, produtos muito usados na época. Veio também o tempo do namoro sério e, com ele, o cinema com sorvete a dois. Minha vida era um filme de aventuras, mais que outra coisa. Tive de vencer muitos obstáculos. E foi um bom tempo assim.
Construir uma família não é fácil, mas, como se sabe, o amor sempre vence.
Como nos filmes de amor, acabei me casando em technicolor e em cinemascope, como um galã, com minha Mercedes, mais bonita que Greta Garbo ou qualquer outra estrela de Hollywood. Com ela comecei a frequentar o centro de São Paulo. Íamos de bonde elétrico, descíamos na Praça do Correio e andávamos de braços dados pelos pontos mais elegantes da cidade.
Misturados aos carros que pertenciam a gente muito rica, estavam os cabriolés, uma espécie de carroça puxada a cavalos... Na Avenida São João estavam os melhores cinemas: o Marabá, o Olido, com seus camarotes e frisas. Quantos filmes! O Canal de Suez, O Morro dos Ventos Uivantes, E o Vento Levou! Vejo-nos direitinho, como em um musical, indo para a cidade de bonde. O condutor, o Delmiro, mais parecia um bailarino, um Fred Astaire tropical, por conta dos trejeitos, malabarismos de corpo que fazia ao parar, descer, cumprimentar, receber as pessoas, acomodá-las e, enfim, conduzir o bonde.
Era mais que um motorneiro. Esse era um show à parte!
Se bem me lembro, o cinema me acompanhou a vida inteira. Isso porque sou do tempo do cinema mudo, veja você, onde os violinos e o piano faziam nossa imaginação ouvir as vozes e sentir as emoções dos artistas que passavam rápidos nas telas. Depois veio o cinema falado e para nós isso era a maior e a melhor invenção. Olhando para o que se passou, constato que fui um bom frequentador das telas. Com chuva ou com sol!
Até nossa primeira filha, com poucos meses de idade, não impedia nossa diversão preferida! Era nossa figurante proibida. Íamos ao Bom Retiro, ao cine Lux. Lá eu conhecia todo mundo e sentávamos com a menina nos braços bem na última fila, caso precisássemos sair às pressas para acalmar um choro repentino. Assistimos a tantas histórias e nossa menina dormia profundamente. Quase sempre.
Talvez por conta do trabalho, das exigências da vida, dos cuidados com a família e mesmo com a facilidade da televisão, acabei me dando conta de que fiquei muito tempo sem ir ao cinema. Engraçado, agora que estou praticamente sozinho, em consequência das perdas que a vida nos traz, o cinema volta com toda a força. Não perco quase nada do que passa nos shoppings perto de casa. Tudo é mais confortável, imenso. Mas tudo é mais barulhento, apressado e real demais. Não sobra muito tempo para sonharmos.
Mesmo assim, quero ir a outros cinemas desta cidade que cresceu e cresce tanto. O jeito é me armar de um celular para que minha filha não fique tão preocupada comigo por causa dessas minhas novas aventuras cinematográficas.”
Quando releio o que está escrito, não sei onde está o que o seu Amalfi me contou e onde está o que projetei de sua vida em mim. Engraçado mesmo! Perdi-me nos labirintos da imaginação, onde o presente e o passado se fundem em um só desenho. A memória brinca com o tempo, como em um filme, como uma criança feliz.
Texto escrito com base no depoimento do sr. Amalfi Mansutti, 82 anos.





A saga da Nhecolândia
Roberto de Oliveira Campos

Surgiu então a Nhecolândia, cujas peripécias eu ouvia, fascinado, como criança, nos serões à luz do lampião, defendendo-me dos mosquitos, pólvoras e as mutucas na Fazenda Alegria.
[...]
Meu avô, Vicente Alexandre de Campos, ali se instalou para fundar uma fazenda — o retiro Paraíso. As terras baixas da Nhecolândia, nome dado em homenagem ao desbravador, abrangiam cerca de 23,5 mil quilômetros quadrados, mais de um sexto dos 140 mil quilômetros quadrados que constituem o Pantanal mato-grossense. Nheco comandou o que, por assim dizer, se poderia chamar uma grande operação comunitária, fazendo doações de terras aos que se animassem a participar da rude aventura.
[...]
Na minha ótica de primeira infância, o Pantanal me parecia mais perigoso que belo. Tinha medo de cobras (a jararaca, a cascavel e a sucuri) e das onças (parda e pintada), então abundantes nas várzeas e capões. A suprema forma de coragem era a caçada de onça com zagaia. Também levara o susto da piranha, quando entrei desprevenido na baía adjacente à Fazenda Alegria. Quase perdi o dedão do pé direito. Era infernal o incômodo dos mosquitos, os pólvoras e as mutucas. Nas longas viagens de carros de boi, comia-se carne-seca e farinha de mandioca, ou assava-se um pacu pescado no rio. Bebia-se de manhã o “tererê”, o guaraná ralado em língua de pirarucu. De vez em quando se matava um boi para o churrasco. O pacu era o peixe favorito e democrático, pois de fácil pesca.
— Pacuzão para os ricos, pacuzinho para os pobres, pacu pra nós todos, era o refrão dos vaqueiros.
As bebidas eram o guaraná ralado e o indefectível chimarrão.
[...]
As belezas do Pantanal, com seus corixos, baías e várzeas, que no começo das chuvas pareciam jardins formais, com riqueza de flora e fauna, só entrariam na minha percepção trinta anos mais tarde, quando voltei, como superintendente do BNDE, ciceroneando uma turma de banqueiros do Eximbank, de Washington.
A lanterna na popa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994.





Nas ondas do rádio
Edson Gabriel Garcia

Cheguei a Nova Granada de manhãzinha, quase escuro, quase claro, a noite indo embora sem pressa e o dia, menos apressado ainda, dando as caras. Passei a alça da mochila pelo ombro e comecei a caminhar na direção da casa de meus pais, localizada no centro da cidade, para uma visita de carinho e saudade. O trajeto me obrigava a passar pela Igreja Matriz e pela praça central, uma seguida pela outra, ambas locais que agitavam minhas lembranças dos tempos da juventude que lá vivi. Dessa vez, qual não foi minha surpresa ao ver que a querida praça havia sumido e em seu lugar restava apenas uma quadra inteira de terra vermelha arrasada, alguns montes de pedra, areia e blocos de concreto. Quase morri de susto, depois de raiva. Como puderam fazer aquilo com a minha praça? Bem... assim que me assentei na casa dos velhos, saí para rever amigos, os poucos que sobraram tanto tempo depois. Acabei chegando à barbearia do Chico, o rei da tesoura, mais de cinquenta anos fazendo barba e cabelo de muitas gerações granadenses. O salão do Chico tornara-se uma espécie de registro oral das lembranças locais. E foi lá que eu encontrei o Edinho da dona Judi, velho amigo cinquentão, um dos poucos da minha turma de juventude que, mais corajoso de todos, resolveu ficar e tocar sua vida lá. Desabafei com o Edinho minha insatisfação com a praça.
E ele, calmo, como se pensasse um dia para escolher cada palavra.
— Pois é... coisa de política... logo tem eleição...
— E, quando tem eleição, a história da cidade vai pro espaço!? — comentei irritado.
— Pois é... que falta faz o Padre Miguel Lucas nessas horas...
Padre Miguel Lucas: o Edinho foi buscar essa lembrança lá nos idos finais dos anos sessenta. O jovem padre espanhol, pouco tempo de Brasil, que chegara a Nova Granada com rezas intensas e ideias novas.
— Você se lembra dele? Da casa paroquial, da rádio...
Claro que me lembrei dele. Dele e da emissora de rádio.
Ao falar da emissora de rádio, os olhos castanhos cor de mel do Edinho brilharam. Ele tinha sido personagem central na criação e no funcionamento da primeira emissora de rádio de Nova Granada. De locutor, criador de programas e textos de propaganda, ele tinha feito tudo, ou quase tudo.
“A primeira vez que o padre Miguel falou de instalar uma rádio na cidade, os olhos de todo mundo perguntaram o que, como, quando, por quê... E o padre, em seu portunhol delicado, foi respondendo e explicando: aqui, em uma das salas da casa paroquial; comprando e instalando um aparelho retransmissor de ondas sonoras; transmitir programas de música, esportes, notícias, missas... A gente só estava acostumado a ouvir rádio de cidade grande. Tupi e Bandeirantes de São Paulo, no máximo a Independência de São José do Rio Preto... Uma rádio em Nova Granada? Parecia coisa de outro mundo!”
Fui lembrando e vendo as imagens antigas desfilarem ali no zunzunzum do pequeno auditório improvisado no salão do Chico.
“Em pouco tempo a cidade inteira havia comprado a ideia. O nome, depois de muitas sugestões, acabou ficando Rádio Educadora Granadense, uma mistura de intenções e desejos religiosos, educativos e artísticos. O retransmissor chegou, cara de objeto não identificado, e foi instalado na sala da frente da casa paroquial. Além dos botões de comando, dois toca-discos, conhecidos por pratos, e um microfone, parecido com aquele que vinha estampado na antiga Revista do Rádio, tudo instalado em uma mesa ampla e grande.
Todo mundo doou discos para a Rádio. Ela começou com mais de mil discos. Teve gente que tirou do baú verdadeiras relíquias, gravações de setenta e oito rotações, aqueles bolachões pretos e duros, com seus cantores preferidos: Francisco Alves, Anísio Silva, Trio Irakitan, Cascatinha e Inhana... Era uma época de transição dos discos de quarenta e cinco rotações, sucessores dos antigos bolachões de setenta e oito, para os mais modernos de trinta e três rotações, que começavam a dominar o mercado. Foi nesse primeiro arrastão de doações que eu peguei um compacto duplo de um cantor quase desconhecido por aqui, chamado Roberto Carlos, que depois acabou virando o maior vendedor de disco do país. Splish plash, um dos seus primeiros sucessos! Lembrei-me do primeiro sucesso nas ondas da Rádio Educadora Granadense, uma música francesa, Ma vie, cantada por um tal de Alain Barrière. Às vezes, a cidade parecia um único e grande alto-falante: todas as casas com seus rádios ligados na nossa Educadora e a mesma música repetida em alto e bom som invadia o espaço.”
No meio dessas lembranças gostosas, deixei escapar um sorriso maroto e trouxe de volta uma história inesquecível.
“Nunca vou me esquecer desse fato. Eu estava apresentando um programa e de repente fui atacado por uma desinteria daquelas... Daquelas que apertam o intestino, dá um nó nas tripas, faz você suar e, em segundos, você tem que achar um banheiro para atender o chamado urgente da natureza. E foi o que eu fiz. Coloquei um LP no prato, acho que um dos sucessos As 14 mais da gravadora CBS, e falei para alguém que estava na sala comigo: dê uma olhada aí que eu vou procurar um banheiro para fazer cocô... Até aí tudo bem, não fosse o microfone estar ainda ligado e todos os rádios, dos santos lares granadenses, receberem a minha sacrossanta informação. Foi o escândalo do mês: o filho do seu Lico, um bom menino, de família tradicional, tinha usado as ondas da rádio do padre para anunciar que ia fazer cocô...”
Bem... minhas memórias radiofônicas pararam por aí. Depois disso, ficamos apenas lembrando bobagens, artes, farras, enganos, estripulias e sacanagens dos nossos tempos de juventude Jovem Guarda.

Eu acabei esquecendo da praça arrasada e da emissora de rádio do padre. Interessante notar que uma cidade que tem um salão como o do Chico Barbeiro jamais terá suas memórias esquecidas. Ali sempre aparecerá alguém, como eu, sempre pronto para avivá-las e transmiti-las aos mais novos ou mais velhos e esquecidos.
Edson Gabriel Garcia. Nas ondas do rádio, fevereiro de 2004.



















17 comentários:

  1. o texto " galinha ao molho pardo " é narrativo ou descritivo

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  2. Graças a Deus eu achei esse livro para o meu trabalho de 🏫

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  3. Adorei trabalhar com esses textos sobre memorias!! Meus alunos aprovaram e gostaram, muito.

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  4. OS TEXTOS SÃO MUITO IMPORTANTES E FAVORECEM UM ENTENDIMENTO MELHOR AOS ALUNOS.

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  5. Identificar os seguintes elementos da narrativa

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