Parecida mas diferente
Zélia Gattai
O pai de Zélia Gattai costumava
contar a história de como sua família havia vindo da Itália para o Brasil. Uma
vez, quando ele narrava a viagem dos Gattai — que era o nome da família de seu
pai —, Zélia, então menina, observou que Eugênio, seu avô materno, escutava
atentamente. Então, pediu a ele que também contasse a história da família da
mãe, os Da Col.
Vovô veio da
Itália com toda a família, contratado como colono para colher café numa fazenda
em Cândido Mota, em São Paulo. Nona Pina passou a viagem toda rezando, pedindo
a Deus que permitisse chegarem com vida em terra. Tinha verdadeiro pavor de que
um dos seus pudesse morrer em alto-mar e fosse atirado aos peixes. Carolina
ressentiu-se muito da viagem, estranhou a alimentação pesada do navio, adoeceu,
mas desembarcaram todos vivos no porto de Santos.
A família fora
contratada por intermédio de compatriotas do Cadore, chegados antes ao Brasil.
Diziam viver satisfeitos aqui e entusiasmavam os de lá através de cartas tentadoras:
“Venham! O Brasil é a terra do futuro, a terra da ‘cucagna’... pagam bom
dinheiro aos colonos, facilitam a viagem...”
Com os Da Col, no
mesmo navio, viajaram outras famílias da região, todos na mesma esperança de
vida melhor nesse país promissor. Viajaram já contratados, a subsistência
garantida.
Em Santos, eram
aguardados por gente da fazenda, para a qual foram transportados, comprimidos
como gado num vagão de carga.
Ao chegar à
fazenda, Eugênio Da Col deu-se conta, em seguida, de que não existia ali aquela
“cucagna”, aquela fartura tão propalada. Tudo que ele idealizara não passava de
fantasia; as informações recebidas não correspondiam à realidade: o que havia,
isto sim, era trabalho árduo e estafante, começando antes do nascer do sol; homens
e crianças cumpriam o mesmo horário de serviço. Colhiam café debaixo de sol
ardente, os três filhos mais velhos os acompanhando, sob a vigilância de um
capataz odioso. Vivendo em condições precárias, ganhavam o suficiente para não
morrer de fome.
A escravidão já
fora abolida no Brasil, havia tempos, mas nas fazendas de café seu ranço
perdurava.
Notificados,
certa vez, de que deviam reunir-se, à hora do almoço, para não perder tempo de
trabalho, junto a uma frondosa árvore, ao chegar ao local marcado para o
encontro os colonos se depararam com um quadro deprimente: um trabalhador negro
amarrado à árvore. A princípio, Eugênio Da Col não entendeu nada do que estava
acontecendo, nem do que ia acontecer, até divisar o capataz que vinha se
chegando, chicote na mão. Seria possível, uma coisa daquelas? Tinham sido
convocados, então, para assistir ao espancamento do homem? Não houve
explicações. Para quê? Estava claro: os novatos deviam aprender como se
comportar; quem não andasse na linha, não obedecesse cegamente ao capataz,
receberia a mesma recompensa que o negro ia receber. Um exemplo para não ser
esquecido.
O negro amarrado,
suando, esperava a punição que não devia tardar; todos o fitavam, calados.
De repente, o
capataz levantou o braço, a larga tira de couro no ar, pronta para o castigo.
Então era aquilo mesmo? Revoltado, cego de indignação, o jovem colono Eugênio
Da Col não resistiu; não seria ele quem presenciaria impassível ato tão covarde
e selvagem.
Impossível
conter-se!
Com um rápido
salto, atirou-se sobre o carrasco, arrebatando-lhe o látego das mãos.
Apanhado de
surpresa, diante da ousadia do italiano, perplexo, o capataz acovardou-se.
O chicote, sua
arma, sua defesa a garantir-lhe a valentia, estava em poder do “carcamano”;
valeria a pena reagir? Revoltado, fora de si, esbravejando contra o capataz em
seu dialeto dos Montes Dolomitas, o rebelde pedia aos companheiros que se
unissem para defender o negro. Todos o miravam calados. Será que não
compreendiam suas palavras, seus gestos? Certamente sim, mas ninguém se atrevia
a tomar uma atitude frontal de revolta. Católico convicto, ele fazia o que lhe
ditava o coração, o que lhe aconselhavam os princípios cristãos...
De repente, como
num passe de mágica, o negro viu-se livre das cordas que o prendiam à árvore. O
capataz apavorou-se. Quem teria desatado os nós. Quem teria?
O topetudo não
fora, estava ali em sua frente, gesticulando, gritando frases incompreensíveis,
ameaçador, de chicote em punho... O melhor era desaparecer o quanto antes,
rapidamente: “esses brutos poderiam reagir contra ele. A prudência mandava não
facilitar”.
Nessa mesma
tarde, a família Da Col foi posta na estrada, porteira trancada para “esses
rebeldes imundos”. Estavam despedidos. Nem pagaram o que lhes deviam. “Precisavam
ressarcir-se do custo do transporte de Santos até a fazenda...” E fim.
Pela estrada
deserta e infinita, seguiu a família, levando as trouxas de roupas e alguns
pertences que puderam carregar, além da honradez, da coragem e da fé em Deus.
Anarquistas,
graças a Deus.
11ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1986.
Tatiana Belinky
[...]
Depois do almoço, continuávamos o nosso turismo carioca. Papai e mamãe, mais o
primo — feliz proprietário de uma “baratinha” — nos levavam, todos empilhados,
a passear pela cidade do Rio de Janeiro. E foi assim que ficamos conhecendo o
Morro da Urca e o Pão de Açúcar — ai, que emoção — pelo funicular, o “bondinho”
pendurado entre aqueles enormes rochedos. E de onde se descortinava uma vista
empolgante, só superada pela paisagem de tirar ainda mais o fôlego que se
estendeu diante de nossos olhos, quando subimos — passageiros de outro
trenzinho incrível, quase vertical — ao alto do Corcovado. Ali ainda não se
erguia a estátua do Cristo Redentor, que é hoje o cartão-postal do Rio de
Janeiro. Mas me parece que o panorama era, por estranho que pareça, bem mais
“divino” ao natural, sem ela.
Fomos
passear também na Gávea e na Avenida Niemeyer, ainda bastante deserta, e na
Tijuca, com a sua floresta e a sua linda Cascatinha. “Cascatinha”, por sinal,
era o nome da cerveja que papai tomava com muito gosto, enquanto nós, crianças,
nos amarrávamos num refrigerante incrível que tinha o estranho nome de Guaraná.
Não
deixamos de passear pelo centro da cidade, na elegantíssima Rua do Ouvidor, e
na muito chique Cinelândia, em frente ao Teatro Municipal e suas escadarias,
com seus bares e sorveterias na calçada. E, claro, na Avenida Rio Branco, reta,
larga, e imponente, embicando no cais do porto, por onde chegamos ao Brasil
pela primeira vez.
E
foi nessa Avenida Rio Branco que tivemos a nossa primeira impressão — e que
impressão! — do carnaval brasileiro. Eu já tinha ouvido falar em carnaval: na
Europa, era famoso o carnaval de Nice, na França, com a sua decantada batalha
de flores; e o carnaval de Veneza, mais exuberante, tradicional, com gente
fantasiada e mascarada dançando e cantando nas ruas. E havia também os
luxuosos, e acho que “comportados”, bailes de máscaras, em muitas capitais
europeias. Eu já ouvira falar em fasching, carnevale, Mardi Gras — vagamente.
Mas o que eu vi, o que nós vimos, no Rio de Janeiro, não se parecia com nada
que eu pudesse sequer imaginar nos meus sonhos mais desvairados.
Aquelas
multidões enchendo toda a avenida, aquele “corso” — o desfile interminável e
lento de carros, para-choque com para-choque, capotas arriadas, apinhados de
gente fantasiada e animadíssima. Todo aquele mundaréu de homens, mulheres,
crianças, de todos os tipos, de todas as cores, de todos os trajes — todos
dançando e cantando, pulando, saracoteando, jogando confetes e serpentinas que
chegavam literalmente a entupir a rua e se enroscar nas rodas dos carros... E
os lança-perfumes, que que é isso, minha gente! E os “cordões”, os “ranchos”,
os “blocos de sujos” — e todo o mundo se comunicando, como se fossem velhos
conhecidos, se tocando, brincando, flertando — era assim que se chamavam os
namoricos fortuitos, a paquera da época —, tudo numa liberdade e descontração
incríveis, especialmente para aqueles tempos tão recatados e comportados...
Tanto que, ainda vários anos depois, uma marchinha carnavalesca falava, na sua
letra alegremente escandalizada, da “moreninha querida... que
anda sem meia em plena avenida”.
Ah,
as marchinhas, as modinhas, as músicas de carnaval, maliciosas, buliçosas e
engraçadas, algumas até com ferinas críticas políticas... E os ritmos, e os
instrumentos — violões, cuícas (coisa nunca vista!), tamborins, reco-recos...
E
finalmente, coroando tudo, as escolas de samba, e o desfile feérico dos enormes
carros alegóricos das sociedades carnavalescas — coisa absolutamente inédita
para nós — com seus nomes esquisitos, “Fenianos”, “Tenentes do Diabo” — cada
qual mais imponente, mais fantástico, mais brilhante, mais deslumbrante, mais
mirabolante — e, para mim, nada menos que acachapante!
E
pensar que a gente não compreendia nem metade do que estava acontecendo! Todo
aquele alarido, todas aquelas luzes, toda aquela agitação, toda aquela alegria
desenfreada — tudo isso nos deixou literalmente embriagados e tontos de
impressões e sensações, tão novas e tão fortes que nunca mais esqueci aqueles
dias delirantes. Vi muitos carnavais depois daquele, participei mesmo de
vários, e curti-os muito. Mas nada, nunca mais, se comparou com aquele primeiro
carnaval no Rio de Janeiro, um banho de Brasil, inesquecível...
Transplante de menina. 3ª ed. São Paulo:
Moderna, 2003.
Viver para contar
Gabriel García Marquez
Até
a adolescência, a memória tem mais interesse no futuro que no passado, e por
isso minhas lembranças da cidadezinha ainda não estavam idealizadas pela
nostalgia. Eu me lembrava de como ela era: um bom lugar para se viver, onde
todo mundo conhecia todo mundo, na beira de um rio de águas diáfanas que se
precipitavam num leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos
pré-históricos. Ao entardecer, sobretudo em dezembro, quando passavam as chuvas
e o ar tornava-se de diamante, a Serra Nevada de Santa Marta parecia
aproximar-se com seus picos brancos até as plantações de banana, lá na margem
oposta. Dali dava para ver os índios aruhacos correndo feito formiguinhas
enfileiradas pelos parapeitos da serra [...]. Nós, meninos, tínhamos então a
ilusão de fazer bolas com as neves perpétuas e brincar de guerra nas ruas
abrasadoras. Pois o calor era tão inverossímil, sobretudo durante a sesta, que
os adultos se queixavam dele como se fosse uma surpresa a cada dia. Desde o meu
nascimento ouvi repetir, sem descanso, que as vias do trem de ferro e os
acampamentos da United Fruit Company foram construídos de noite, porque de dia
era impossível pegar nas ferramentas aquecidas pelo sol.
Gabriel García Marquez. Viver para contar. Rio de Janeiro: Record, 2003.
Minha vida de menina
Helena Morley
Quarta-feira,
28 de agosto (de 1895).
Faço
hoje quinze anos. Que aniversário triste!
Vovó
chamou-me cedo, ansiada como está, coitadinha, e deu-me um vestido. Beijou-me e
disse: “Sei que você vai ser sempre feliz, minha filhinha, e que nunca se
esquecerá de sua avozinha que lhe quer tanto”. As lágrimas lhe correram pelo
rosto abaixo e eu larguei dos braços dela e vim desengasgar-me aqui no meu
quarto, chorando escondida.
Como
eu sofro de ver que mesmo na cama, penando com está, vovó não se esquece de mim
e de meus deveres e que eu não fui o que devia ter sido para ela! Mas juro por
tudo, aqui nesta hora, que vovó melhorando eu serei um anjo para ela e me
dedicarei a esta avozinha tão boa e que me quer tanto.
Vou
agora entrar no quarto para vê-la e já sei o que ela vai me dizer: “Já estudou
suas lições? Então vá se deitar, mas procure antes alguma coisa para comer. Vá
com Deus”.
Minha vida de menina. São Paulo: Companhia
das Letras, 1942.
Mercador de escravos
Alberto da Costa e Silva
“Quando
eu morei na Nigéria, ouvi de vários descendentes de ex-escravos retornados do
Brasil que seus antepassados trouxeram consigo, um saquinho de ouro em pó. E
que os menos afortunados desembarcavam em Lagos com os instrumentos de seu
ofício e alguns rolos de tabaco, mantas de carne-seca e barriletes de cachaça,
para com eles reiniciar a vida. É provável que tenha sido também assim, com seu
contrabando de ouro ou o seu tanto de fumo e jeritiba, que alguns dos
traficantes brasileiros instalados no golfo do Benin começaram os seus
negócios.
Não
foi este, porém, ao que parece, o caso de Francisco Félix de Souza. A menos que
estivesse mentindo, quando disse ao reverendo Thomas Birch Freeman que chegara
à Costa sem um tostão e que foram de indigência os seus primeiros dias
africanos - confissão corroborada por um parágrafo de Theophilus Conneau, no
qual se afirma que Francisco Félix começou a carreira a sofrer privações e toda
a sorte de problemas. Outro contemporâneo, o comandante Frederick E. Forbes,
foi menos enfático, porém claro: Francisco Félix era um homem pobre, quando
desceu na África.
Que
ele tenha, de início, como declarou, conseguido sobreviver com os búzios que
furtava dos santuários dos deuses, não é de estranhar-se. Os alimentos eram
muito baratos naquela parte do litoral. Numa das numerosíssimas barracas
cobertas de palha do grande mercado de Ajudá, recebia-se da vendedora, abrigada
sob o teto de palha ou sentada num tamborete atrás do trempe com seu tacho
quente, um naco de carne salpicado de malagueta contra dois ou três cauris.
Custava outro tanto um bocado de inhame, semienvolto num pedaço de folha de
bananeira e encimado por lascas de peixe seco. E talvez se obtivesse por uma só
conchinha um acará.
Francisco Félix de Souza, mercador de
escravos.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Editora da UERJ, 2004.
Por parte de pai
(Oficina 3)
Bartolomeu Campos Queirós
Minha
cama ficava no fundo do quarto. Pelas frestas da janela soprava um vento
resmungando, cochichando, esfriando meus pensamentos, anunciando fantasmas. As
roupas, dependuradas em cabides na parede, se transfiguravam em monstros e
sombras. Deitado, enrolado, parado imóvel, eu lia recado em cada mancha, em
cada dobra, em cada sinal. O barulho do colchão de palha me arranhava. O escuro
apertava minha garganta, roubava meu ar. O fio da luz terminava amarrado na
cabeceira do catre. O medo assim maior do que o quarto me levava a apertar a
pera de galalite e acender a luz, enfeitada com papel crepom. O claro me
devolvia as coisas em seus tamanhos verdadeiros. O nariz do monstro era o cabo
do guarda-chuva, o rabo do demônio o cinto do meu avô, o gigante, a capa
“Ideal” cinza para os dias de chuva e frio. Então, procurava distrair meu pavor
decifrando os escritos na parede, no canto da cama, tão perto de mim. Mas era
minha a dificuldade de acomodar as coisas dentro de mim. Sobrava sempre um
pedaço...
Por parte de pai. Belo Horizonte:
RHJ, 1995.
Galinha ao molho pardo
Fernando Sabino
Ao
chegar da escola, dei com a novidade: uma galinha no quintal.
O
quintal de nossa casa era grande, mas não tinha galinheiro, como quase toda
casa de Belo Horizonte naquele tempo. Tinha era uma porção de árvores: um pé de
manga sapatinho, outro de manga coração-de-boi, um pé de gabiroba, um pé de
goiaba branca, outro de goiaba vermelha, um pé de abacate e até um pé de
fruta-de-conde. [...] De um lado o barracão com o quarto da Alzira cozinheira e
um quartinho de despejo. Do outro lado, uma caixa de madeira grande como um
canteiro, cheia de areia que papai botou lá para nós brincarmos. [...]
Pois
no fundo do quintal que eu vi a galinha, toda folgada, ciscando na caixa de
areia. Havia sido comprada por minha mãe para o almoço de domingo: Dr.
Junqueira ia almoçar em casa e ela resolveu fazer galinha ao molho pardo.
Eu
já tinha visto a Alzira matar galinha, uma coisa terrível. Agarrava a coitada
pelo pescoço, agachava, apertava o corpo dela entre os joelhos, torcia com a
mão esquerda a cabecinha assim para um lado, e com a direita, zapt! passava o
facão afiado, abrindo um talho no gogó. O sangue esguichava longe. Ela aparava
logo o esguicho com uma bacia, deixando que escorresse ali dentro até acabar. E
a bichinha ainda viva, estrebuchando nas mãos da malvada.
Como
se fosse a coisa mais natural deste mundo, a Alzira me contou o que ia
acontecer com a nova galinha.
Revoltado,
resolvi salvá-la.
Eu
sabia que o Dr. Junqueira era importante, meu pai dependia dele para uns negócios.
Pois no que dependesse de mim, no domingo ele ia poder comer tudo, menos
galinha ao molho pardo.
Era
uma galinha branca e gorda, que não me deu muito trabalho para pegar. Foi só
correr atrás dela um pouco, ficou logo cansada. Agachou-se no canto do muro, me
olhou de lado como as galinhas olham e se deixou apanhar.
Não
sei se percebeu que eu não ia lhe fazer mal. Pelo contrário, eu pretendia
salvar a sua vida. O certo é que em poucos minutos ficou minha amiga, não fugiu
mais de mim.
—
O seu nome é Fernanda — falei então. [...]
—
Vou esconder você num lugar que ninguém é capaz de descobrir.
Junto
do tanque de lavar roupa costumava ficar uma bacia grande de enxaguar. A Maria
lavadeira só ia voltar na segunda-feira. Antes disso ninguém ia mexer naquela
bacia. Assim que escureceu, escondi a Fernanda debaixo dela.
[...]
Na manhã de domingo me levantei bem cedo e fui dar uma espiada na Fernanda.
[...]
Lá do fundo escuro do porão, onde tinha ido me esconder, vi a Alzira olhar ao
redor:
—
Por falar nisso, onde é que se meteu a galinha? [...]
—
Você não estava brincando com ela ontem, menino?
—
Isso foi ontem. Hoje eu não vi ela ainda.
—
Será que fugiu? Ou alguém roubou? [...]
Agarrei
a ideia no ar, era a salvação:
—
Isso mesmo! Quando eu estava ali no quintal vi um homem passar correndo...
Levava uma coisa escondida embaixo do paletó. Só podia ser a galinha.
A
Alzira não parecia acreditar muito na história. Pelo contrário, ficou mais
desconfiada.
[...]
E saiu pelo quintal, à procura da galinha, olhando aqui e ali: nos galhos das
árvores, atrás do barracão, no meio dos bambus. Depois foi contar para mamãe
que a galinha havia sumido.
Fui
atrás, para o que desse e viesse. Escutei tudo. Mamãe torcia as mãos:
—
E agora, como vai ser? Como é que ela foi sumir assim, sem mais nem menos?
—
Sei lá — respondeu a Alzira: — Não acredito que tenham roubado, como diz o
Fernando. Vai ver que saiu voando e pulou o muro. Bem que pensei em cortar as
asas dela e me esqueci. Agora é tarde.
—
Está quase na hora do almoço — disse minha mãe: — O Dr. Junqueira está para
chegar em uma hora, e como é que a gente vai fazer sem a galinha? O Domingos
vai ficar aborrecido.
Dali
a pouco era o meu pai quem chegava da rua, trazendo o jornal de domingo debaixo
do braço. Quando mamãe lhe deu a triste notícia, para surpresa minha e dela,
ele não se aborreceu:
—
Faz outra coisa. Macarrão, por exemplo. O Dr. Junqueira é bem capaz de gostar
de macarrão.
[...]
Pois o Dr. Junqueira não só gostou, como repetiu duas vezes, para grande satisfação
de mamãe. [...] Guardanapo enfiado no colarinho, o Dr. Junqueira limpou os
bigodes, satisfeito:
—
Ainda bem que era essa macarronada tão boa. Eu estava com medo que fosse
galinha. Se tem uma coisa que eu detesto é galinha. Principalmente ao molho
pardo.
Nem
por isso senti que minha amiga Fernanda não estava mais condenada à morte.
Mesmo porque, meu pai gostava também de galinha, com ou sem o Dr. Junqueira.
Por outro lado, ela podia ficar escondida o resto da vida (eu não tinha a menor
ideia de quanto tempo vivia uma galinha). E na manhã seguinte a Maria viria
lavar roupa, ia descobrir a Fernanda encolhida debaixo da bacia.
Depois
que o almoço terminou e o Dr. Junqueira se despediu, fui lá perto do tanque
fazer uma visitinha a ela, resolvido a ganhar tempo:
—
Você hoje ainda vai dormir aí, mas amanhã eu te solto, está bem?
Ela
fez que sim com a cabeça. [...]
De
manhãzinha, antes que a Maria lavadeira chegasse, fui até lá, levantei a bacia
e peguei a Fernanda, procurei mamãe com ela debaixo do braço:
—
Olha só quem está aqui.
Mamãe
se espantou:
—
Uai, ela não tinha sumido? Onde é que você encontrou essa galinha, Fernando?
De
repente seus olhos se apertaram num jeito muito dela, quando entendia as
coisas: havia entendido tudo. Antes que me passasse um pito, eu avisei:
—
Se tiverem de matar a minha amiga, me matem primeiro.
Mamãe
achou graça quando soube que ela se chamava Fernanda e resolveu não se importar
com o que eu tinha feito, pelo contrário: deixou que a galinha passasse a ser
um de meus brinquedos. Só proibiu que eu a levasse para dentro de casa.
Fernanda me seguia os passos por toda parte, como um cachorrinho.
E
ela continuou minha amiga, até morrer de velha, não sei quanto tempo mais
tarde.
Só
sei que alguns dias depois do almoço do Dr. Junqueira, mamãe comprou um frango.
—
Esse vai se chamar Alberto — eu disse logo.
—
Pois sim — disse minha mãe, e mandou que a Alzira tomasse conta do frango.
No
dia seguinte mesmo, no almoço, comemos o Alberto. Ao molho pardo.
O menino no espelho. Rio de Janeiro:
Record, 1992.
O valetão que engolia meninos e outras
histórias de Pajé
Kelli Carolina Bassani
Já
foram escritas muitas histórias da época em que os meninos engraxates eram
engolidos pelo valetão da Rua Sete de Setembro. Mas nenhuma delas conta esta ou
outras histórias de Pajé. Guardo-as dentro do peito, como boas lembranças da
rua onde vivi e que teimam em se misturar com a história da cidade.
Nascemos
juntos: eu, a rua e essas histórias. Somos uma coisa só, mas nós não estamos
nos livros. Estamos na contramão, por isso me atrapalho com as palavras. Às
vezes falta ar, outras o ar é demais, então o meu coração acelera, o nó na
garganta avisa: o menino Pajé vai acordar!
Hoje,
quem não conhece a Rua Sete de Setembro é porque não conhece minha cidade —
Toledo. Apertada entre outras no extremo oeste paranaense, bem pertinho do
Paraguai, surgiu de uma clareira no meio da mata.
Naquele
tempo, uma clareira; hoje, Rua Sete de Setembro. Essa rua foi crescendo e
acolhendo o progresso que tenta esconder e aprisionar as histórias de Pajé.
Elas estão descansando embaixo do calçamento, dos asfaltos, dos prédios, das
casas. Basta um sinal que elas voltam.
Cheiro
de terra molhada — esse era o sinal. E, ainda hoje, sinto esse cheiro entrando
no meu cérebro e mexendo com o meu coração. Naquele tempo bastava sentir o
cheiro de terra molhada para que nós, os meninos engraxates, escondêssemos
nossas engraxadeiras — caixa de madeira em que se guardava o material
necessário para engraxar sapatos — no porão dos fundos da bodega do Pizetta e, como
garotos matreiros, saíssemos de mansinho, sem despertar curiosidade. Corríamos
lá embaixo, no começo da rua que embicava no meio da mata, pois o mistério ia
começar!
A
chuva caía e formava muita enxurrada que, com sua força, trazia a terra
misturada. Parecia uma cascata de chocolate que despencava no valetão — buraco
muito profundo provocado pelas enxurradas, erosão. A água fresquinha que caía
do céu misturava com a terra quente e provocava o mistério. Nós éramos puxados
para dentro daquele enorme buraco por uma força estranha sem dó. Mesmo os que
não queriam não conseguiam resistir, porque a magia era muito forte e, em
poucos segundos, estávamos lá dentro, na garganta do valetão, onde brincávamos
durante horas. Nessas horas o trabalho era esquecido.
Quando
eu era menino, trabalhava muito. Todos os dias de manhã ia à escola e, ao
retornar, mal acabava de almoçar, pegava a engraxadeira, colocava nas costas
para a rua, quer dizer, para o trabalho. A engraxadeira era muito grande e
pesada para meu tamanho — eu era apenas um garoto! Mas era a única forma de
ajudar minha mãe no sustento da família.
Sentia
como se estivesse carregando o mundo sozinho.
Hoje
sou adulto e sei que aquela magia era fruto de nossa fantástica imaginação.
Como qualquer outro menino, o engraxate também tinha direito de brincar. Uma
das poucas vezes em que podíamos fazer isso era quando chovia. Mesmo que depois
nos custasse castigos e surras.
Atualmente,
as brincadeiras, comparadas com as de meu tempo, são muito diferentes. Hoje, os
heróis são Superman, Batman, Homem-Aranha. Antes tínhamos heróis indígenas, com
suas histórias cheias de mistérios das florestas.
Naquele
tempo, quando chovia, o valetão da Rua Sete de Setembro era nosso mundo
fantástico. Além das divertidas brincadeiras no lamaçal que escorria da rua,
fazíamos cabanas no paredão da erosão, guerrilhas com bodoque, usando sementes
de árvores como cinamomo e mamona.
Quando
não chovia, sobrava tempo para brincar só aos domingos. Então, eu — Pajé — e
minha turma nos reuníamos na mata, que se misturava com o terreiro das casas.
Nele,
construíamos cabanas, arcos, flechas, tacapes. Pintávamos o corpo todo com
barro e frutinhas da mata. Assim, sentindo-nos como heróis, brincávamos de
índios guerreiros, até o sol se esconder.
Nossa
vida se enchia dos poderes que vinham da mata e seguia solta, como passarinho.
O fim da história? Não sei não, porque eu ainda vivo. E enquanto eu viver as
lembranças nunca vão terminar.
Aluna
finalista da 3a edição do Prêmio Escrevendo o Futuro, em
2006, 4ª série da E.M.E.I.E.F. Walter Fontana, Toledo - PR.
Por parte de pai
(Oficina 5)
Bartolomeu Campos Queirós
Debruçado
na janela meu avô espreitava a rua da Paciência, inclinada e estreita. Nascia
lá em cima, entre casas miúdas e se espichava preguiçosa, morro abaixo. Morria
depois da curva, num largo com sapataria, armazém, armarinho, farmácia, igreja,
tudo perto da escola Maria Tangará, no Alto de São Francisco.
[...]
Eu brincava na rua, procurando o além dos olhos, entre pedras redondas e
irregulares calçando a rua da Paciência. Depois das chuvas, essas pedras
centenárias, cinza, ficavam lisas e limpas, cercadas de umidade e areia lavada.
Nas enxurradas desciam lascas de malacheta brilhando como ouro e prata,
conforme a luz do sol.
[...]
Meu avô, pela janela, me vigiava ou abençoava, até hoje não sei, com seu olhar
espantado de quem vê cada coisa pela primeira vez. E aqueles que por ali
passavam lhe cumprimentavam: “Oi, seu Queirós”. Ele respondia e rimava: “Tem dó
de nós”. Minha avó, assentada na sala, fazendo bico de crochê em pano de prato,
não via a rua.
[...]
O café, colhido no quintal da casa, dava para o ano todo, gabava meu avô,
espalhando a colheita pelo chão de terreiro, para secar. O quintal se estendia
para muito depois do olhar, acordando surpresa em cada sombra. Torrado em
panela de ferro, o café era moído preso no portal da cozinha. O café do bule
era grosso e forte, o da cafeteira, fraco e doce. Um para adultos e outro para
crianças. O aroma do café se espalhava pela casa, despertando a vontade de
mastigar queijo, saborear bolo de fubá, comer biscoito de polvilho, assado em
forno de cupim. [...] Minha avó, coado o café, deixava o bule e a cafeteira
sobre a mesa forrada com toalha de ponto cruz, e esperava as quitandeiras.
Tudo
se comprava na porta: verduras, leite, doces, pães. Com a caderneta do armazém
comprava-se o que não podia ser plantado em casa. No final do mês, ao pagar a
conta ganhava-se uma lata de marmelada.
Depois
do cafezal, na divisa com a serra, corria o córrego, fino e transparente.
Tomávamos banho pelados, até a ponta dos dedos ficarem enrugadas. Meu avô raras
vezes, nos fazia companhia.
[...]
Meu avô conhecia o nome de todas as frutas. Na hora de voltar, ele trazia, se
equilibrando pelos caminhos, uma lata de areia para minha avó arear as panelas
de ferro.
[...]
Atrás da horta havia chiqueiro onde três ou quatro porcos dormiam e comiam, sem
desconfiar do futuro. Se eu fosse porco não engordava nunca, imaginava. Ia
passar fome, fazer regime, para continuar vivendo.
[...]
Meu avô convidou, naquela tarde, para me assentar ao seu lado nesse banco
cansado. Pegou minha mão e, sem tirar os olhos do horizonte, me contou:
O
tempo tem uma boca imensa. Com sua boca do tamanho da eternidade ele vai
devorando tudo, sem piedade. O tempo não tem pena. Mastiga rios, árvores,
crepúsculos. Tritura os dias, as noites, o sol, a lua, as estrelas. Ele é o
dono de tudo. Pacientemente ele engole todas as coisas, degustando nuvens,
chuvas, terras, lavouras. Ele consome as histórias e saboreia os amores. Nada
fica para depois do tempo.
As
madrugadas, os sonhos, as decisões, duram na boca do tempo. Sua garganta traga
as estações, os milênios, o ocidente, o oriente, tudo sem retorno. E nós, meu
neto, marchamos em direção à boca do tempo.
Meu
avô foi abaixando a cabeça e seus olhos tocaram em nossas mãos entrelaçadas. Eu
achei serem pingos de chuva as gotas rolando sobre meus dedos, mas a noite
estava clara, como tudo mais.
Por parte de pai. Belo Horizonte:
RHJ, 1995.
Meus tempos de criança
Rostand Paraíso
Pulávamos
os muros e ganhávamos os quintais das casas vizinhas, enormes e cheias de
fruteiras e de toda a sorte de animais, gatos, cachorros, galinhas, patos,
marrecos e outros mais. Chupando mangas, gostosas mangas, mangas-espada,
mangas-rosa e manguitos, esses quase sempre os mais saborosos, dividíamos os
times e organizávamos as peladas de fundo de quintal que exigiam grande
malabarismo de nossa parte, com as frondosas árvores para driblar e grandes
irregularidades no terreno para contornar.
Usávamos
“bolas de meias”, preparadas por nós mesmos com papel de jornal compactado e
colocado dentro de uma meia de mulher, mas já começávamos a usar bolas de
borrachas e as “bolas-de-pito”, que eram bolas de couro, com pito para fora e
que tínhamos o cuidado de envergar para dentro, para evitar arranhaduras.
Gostosas,
memoráveis tardes que se prolongavam até a noitinha, parando-se apenas quando
não havia mais sol e quando não podíamos mais ignorar os gritos que vinham de
nossa casa, para tomar banho, mudar de roupa e ir jantar.
As
mesmas misteriosas ordens faziam-nos começar a desengavetar nossos times de
botão para a temporada que iria se iniciar. Os botões eram polidos e
engraxados.
Descobríamos,
nos botões das capas e dos jaquetões e, também, nas tampas de remédios,
promissores craques. Nossos pais começavam a estranhar, sem encontrar qualquer
explicação para o fato, o desaparecimento das tampas dos xaropes e dos botões
das roupas. Esses craques em potencial, novos valores que surgiam, eram
devidamente preparados e passávamos dias a lixá- los e, para lhes dar mais peso
e maior aderência à mesa, a enchê-los com parafina derretida. Trabalho que
levava às vezes algumas semanas, os novos craques sendo testados exaustivamente
até que nos déssemos por satisfeitos e os considerássemos prontos e aprovados
para as grandes competições pela frente.
Os
botões de chifre, preparados pelos presos da Casa de Detenção, onde íamos
comprá-los, começavam, pela sua robustez e pela potência de seus chutes, a
ganhar nossa preferência. Não gostávamos, porém, daqueles botões que vinham do
Sul, de plástico, todos iguais, diferençando-se uns dos outros apenas pelas
“camisas” que traziam coladas sobre si, com as cores dos clubes cariocas.
Preferíamos, nós mesmos, pregar as cores do nosso time preferido, no meu caso o
Santa Cruz.
Cada
botão ganhava seu nome, Perácio, Leônidas, Patesko, Pitota, Sidinho, Siduca...
botões que já não tenho mais, desaparecidos misteriosamente ao longo do tempo.
Meu ponta-esquerda, Tarzan, que tantas alegrias me deu, com suas arrancadas
para o campo adversário e com seus mirabolantes gols, que fim terá levado?
Preferíamos
usar as bolas de farinha, arredondadas cuidadosamente na palma da mão e que
permitiam um bom controle, correndo menos que as de miolo de pão e não tanto
quanto as de borracha.
Dentro
daquelas regras que adotávamos e que permitiam que continuássemos a jogar
enquanto não perdêssemos o controle da bola, éramos obrigados, quando nos
sentíamos em condições de tentar o chute a gol, a avisar o adversário:
“Defenda-se!” ou “Prepare-se!”, dando tempo a que ele posicionasse melhor o seu
goleiro e puxasse, para junto dele, os beques, geralmente bem altos, com a
finalidade de dificultar o chute rasteiro.
As
partidas eram irradiadas por um de nós, ao estilo de José Renato, o famoso
locutor esportivo da PRA-8, e os gols, quando convertidos, eram gritados
histericamente, incomodando toda a vizinhança.
Antes que o tempo apague… 2ª ed. Recife:
Editora Comunicarte, 1996.
Os automóveis invadem a cidade
Zélia Gattai
Naqueles
tempos, a vida em São Paulo era tranquila. Poderia ser ainda mais, não fosse a
invasão cada vez maior dos automóveis importados, circulando pelas ruas da
cidade; grossos tubos, situados nas laterais externas dos carros, desprendiam,
em violentas explosões, gases e fumaça escura. Estridentes fonfons de buzinas,
assustando os distraídos, abriam passagem para alguns deslumbrados motoristas
que, em suas desabaladas carreiras, infringiam as regras de trânsito, muitas
vezes chegando ao abuso de alcançar mais de 20 quilômetros à hora, velocidade
permitida somente nas estradas. Fora esse detalhe, o do trânsito, a cidade
crescia mansamente. Não havia surgido ainda a febre dos edifícios altos; nem
mesmo o “Prédio Martinelli” - arranha-céu pioneiro em São Paulo, se não me
engano do Brasil - fora ainda construído. Não existia rádio, e televisão, nem
em sonhos. Não se curtia som em aparelhos de alta-fidelidade. Ouvia-se música
em gramofones de tromba e manivela. Havia tempo para tudo, ninguém se afobava,
ninguém andava depressa. Não se abreviavam com siglas os nomes completos das
pessoas e das coisas em geral. Para que isso? Por que o uso de siglas? Podia-se
dizer e ler tranquilamente tudo, por mais longo que fosse o nome por extenso -
sem criar equívocos - e ainda sobrava tempo para ênfase, se necessário fosse.
Os
divertimentos, existentes então, acessíveis a uma família de poucos recursos
como a nossa, eram poucos. Os valores daqueles idos, comparados aos de hoje, no
entanto, eram outros; as mais mínimas coisas, os menores acontecimentos,
tomavam corpo, adquiriam enorme importância. Nossa vida simples era rica,
alegre e sadia. A imaginação voando solta, transformando tudo em festa, nenhuma
barreira a impedir meus sonhos, o riso aberto e franco. Os divertimentos, como
já disse, eram poucos, porém suficientes para encher o nosso mundo.
Anarquistas, graças a Deus. 11a ed.
Rio de Janeiro: Record, 1986.
Por parte de pai
(Oficina 8)
Bartolomeu Campos Queirós
Em
casa de meu pai, todas as noites, eu resmungava pedindo água. Era uma sede com
hora marcada. Minha mãe já não se movia muito, entre dores, passava as noites
em claro, controlando gemidos. Meu pai se levantava e ia até minha cama.
Fechava a mão em forma de copo, levantava a minha cabeça com a outra, e fazia
gute, gute. Eu bebia sua mentira e dormia feliz. Não, meu pai não economizava
água. Ele era mão-aberta e nunca chegava, agora em raras viagens, sem pequenos
presentes. Ele os esquecia sobre a mesa e ficava distraído, esperando elogios.
Engraçado,
na casa do meu avô eu não sentia sede, nem de madrugada, quando os galos me
acordavam junto com a manhã e eu ficava esperando o cheiro do café me tirar da
cama. No meio da noite, se a tempestade rompia o silêncio do escuro, meu avô
vinha até meu quarto. Abria a porta de manso, para verificar se a chuva do
vento não estava entrando na janela, e benzia meus sonhos. Então, com a mão
muito branda, arrumava meus lençóis e deixava um recado em minha testa, uma
certa bênção leve como os gatos. Também meu avô era econômico nos carinhos e
tímido nos gestos. Nessa hora, quando os raios esfaqueavam o resto da noite,
enrolado em meus pensamentos eu me esforçava para perdoar meu avô por não amar
os gatos.
Por parte de pai. Belo Horizonte:
RHJ, 1995.
O Lavador de Pedra
Manoel de Barros
A
gente morava no patrimônio de Pedra Lisa. Pedra Lisa era um arruado de 13 casas
e o rio por detrás. Pelo arruado passavam comitivas de boiadeiros e muitos
andarilhos. Meu avô botou uma Venda no arruado. Vendia toucinho, freios, arroz,
rapadura e tais. Os mantimentos que os boiadeiros compravam de passagem. Atrás
da Venda estava o rio. E uma pedra que aflorava no meio do rio. Meu avô, de
tardezinha, ia lavar a pedra onde as garças pousavam e cacaravam. Na pedra não
crescia nem musgo. Porque o cuspe das garças tem um ácido que mata no
nascedouro qualquer espécie de planta. Meu avô ganhou o desnome de Lavador de
Pedra. Porque toda tarde ele ia lavar aquela pedra.
A
Venda ficou no tempo abandonada. Que nem uma cama ficasse abandonada. É que os
boiadeiros agora faziam atalhos por outras estradas. A Venda por isso ficou no
abandono de morrer. Pelo arruado só passavam agora os andarilhos. E os
andarilhos paravam sempre para uma prosa com o meu avô. E para dividir a vianda
que a mãe mandava para ele. Agora o avô morava na porta da Venda, debaixo de um
pé de jatobá. Dali ele via os meninos rodando arcos de barril ao modo que
bicicleta. Via os meninos em cavalo de pau correndo ao modo que montados em
ema. Via os meninos que jogavam bola de meia ao modo que de couro. E corriam
velozes pelo arruado ao modo que tivessem comido canela de cachorro. Tudo isso
mais os passarinhos e os andarilhos era paisagem do meu avô. Chegou que ele
disse uma vez: Os andarilhos, as crianças e os passarinhos têm o dom de ser
poesia. Dom de ser poesia é muito bom!
Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta
do Brasil, 2003.
As almas do Amém
Ilka Brunhilde Laurito
Naquela
grande casa de pedra em que vovô Vincenzo e vovó Catarina moravam, ali na rua
dos Anjos, havia uma escadinha misteriosa que subia de uma das grandes salas e
que parava numa porta sempre trancada. Se escada tivesse nariz, eu poderia
dizer que ela batia com o nariz na porta. A porta do sótão.
Ao
perguntar para minha avó:
—
Posso entrar lá?...
...
ela me respondia:
—
Não, Fortunatella. Criança não entra lá.
Lá,
me parecia um lugar assombrado e perigoso. Por isso mesmo fascinante. [...]
Uma
vez por semana, vovô Vincenzo reunia à noitinha todos os netos [...]. Ele
puxava um grande terço de madeira e começava a rezar. Todo mundo rezava junto
com ele e, ao final, um vibrante coro dizia bem alto: AMÈM! Ao ouvir esse amém
final e triunfante, vovô Vincenzo erguia as mãos para o céu e encomendava o
terço para as almas daqueles que já haviam morrido [...].
Pois
naquela noite iluminada, quando vovô fechou o coro do terço, erguendo as mãos e
os olhos para o alto, tive a certeza: quem morava no sótão eram as almas do
AMÉM! [...]
Um
dia porém — e sempre, em toda história, há o dia de um porém —, prima Rina
[...] perguntou-me de súbito:
Fortunatella,
o que é que o vovô guarda de bom lá no sótão, hein?
Ofendida,
respondi-lhe mais que depressa:
—
Vovô não guarda nada LÁ dentro. LÁ moram as almas do AMÉM, que guardam a casa
de dia e de noite, principalmente de noite.
Rina
soltou uma grande gargalhada e me chamou de boba, desafiando-me:
—
Pois você vá LÁ visitar essas almas, que terá uma grande surpresa.
Eu
não aguentava desafios. E não sosseguei enquanto não me vi sozinha em casa,
apertando nas mãos a chave do sótão, que a vovó guardava dentro de um vaso.
Subi devagarinho e com o coração assustado aquela escadinha que ia dar com o
nariz na porta. E, quando a abri, pus meu nariz no escuro. [...]
Procurando
a janela, percebi uma fresta de luz escorrendo de um quadrado de madeira.
Escancarei-o, e a janelinha se debruçou sobre os telhados da casa de Rina.
Voltei-me para olhar para dentro do sótão em que deviam dormir as almas do
AMÉM! [...] O que ali estava, pendendo do teto, ou muito bem armazenados em
caixas e sacos, eram salames, azeitonas, queijos duros, figos secos, nozes,
avelãs, amêndoas e mais um monte de coisas gostosas que minha avó Catarina
fazia subir pela escadinha toda vez que ia até o sótão. Era ali o estoque de
alimentos para os dias de inverno, quando o frio enregelava os campos e não
havia colheita. Era a comida para os corpos do AQUI. [...]
Eu
logo achei que vovô Vincenzo e vovó Catarina não se importariam se eu
distribuísse o estoque entre os netos. E me preparei para fazer escorregar para
o telhado vizinho metade daqueles alimentos que meus avós haviam armazenado com
tanto sacrifício para os dias difíceis.
Eu
disse “me preparei”. Porque uma comadre que passava pela rua, ouvindo
risadinhas sobre os telhados vizinhos, correu a chamar vovó, que estava na
Igreja de San Leone, lá na praça da Acquanova. [...]
Vovó
Catarina levou um susto, mas me perdoou [...].
E
foi assim que acabei descobrindo que, quando vovô Vincenzo acabava o terço e
erguia as mãos para o teto, talvez estivesse pedindo às almas do AMÉM que
velassem pela fartura dos campos da Calábria e que nunca deixassem faltar o pão
e o vinho sobre as mesas a fim de que nenhum calabrês, nunca mais, precisasse
emigrar para terras alheias.
A menina que fez a América. São Paulo: FTD,
2002.
Como num filme
Antonio Gil Neto
Não
foi difícil cair nas graças de Seu Amalfi. Direto, sincero, amoroso, foi logo
falando de sua vida, com um jeito meio solto, especial, como quem vai montando
uma sequência de cenas em nosso pensamento. De início, estáticas e em preto e
branco, e, aos poucos, em impulsos coloridos. Depois de uma ou outra pergunta,
quase nem precisei falar mais nada. Apenas ouvir, entregar-se à brincadeira da
memória era o que bastava.
Ele
foi contando, contando e imagens foram se instalando em mim como quem entra em
um filme.
“Esse
cheirinho de café pendurado no vento leve conduz a meu tempo mais antigo.
Pensei
ouvir bem baixinho um fiapo de uma canção napolitana e tudo veio à tona. Logo
lembrei-me de minha mãe torrando café, fazendo o pão, a macarronada. Bem que
procuro não pensar muito para não marejar os olhos.
O
começo de tudo foi na Itália. De lá vieram meus pais. Fugidos do horror da
guerra, acabaram por fazer a vida aqui em São Paulo, onde nasci.
É
a partir dessas lembranças que minha cabeça parece uma máquina de fabricar
filmes.
Recordo
muita coisa. Não só do que minha mãe contava, mais ainda das que eu vivi.
Lá
pelos idos de 1929, com cerca de sete anos de idade, era menino feito. Minha
vida era um misto de cowboy com Tarzan. Onde
hoje fica o Shopping Center Norte era só mato, água e muita, muita terra. Era
lá meu paraíso. Meu e dos meus amigos: o Vitorino, o Zacarias... Vivia para
jogar futebol, nadar, pescar e caçar passarinhos.
Uma
brincadeira de que gostávamos muito era ‘chocar o trem’. Sabe o que é isso?
Era
subir rapidinho no trem em movimento. Ele andava bem devagar, é claro, levando
pedras da Serra da Cantareira para construir a cidade. Com o tempo seu trajeto
se encheu de bairros: Tucuruvi, Jaçanã, Vila Mazzei, Água Fria e mais o que há
agora. Lembra aquela música do Adoniran? Tem a ver com esse trem...
Da
escola não gostava tanto. Não era um bom aluno, mas era esperto, vivido. Isso
sim. O que acabava ajudando em muitas situações... Em um abrir e fechar dos
olhos da memória lá estão a escola, o corre-corre das crianças e todos eles
intactos e em plena labuta do dia: Dona Albertina, Dona Isabel, Seu Luís, os
professores. Ainda o Seu Peter, o diretor, e Seu Luigi, o servente. Quantas
vezes em meio à cópia da lousa, que seguia plena em silêncio e dever, disparava
um piscar enviesado para meus companheiros de time. Quebrávamos as pontas dos
lápis e com o descaramento e a falsa pretensão de deixarmos todos eles
apontadinhos para a letra ficar bem desenhada e bem bonita nas nossas
brochuras, lá íamos nós, atrás da porta e com a gilette em punho, armar em
cochichos a melhor estratégia para o próximo jogo. Tudo lorota!
Meio
moleque, meio mocinho, sempre dava algum jeito de arranjar um dinheirinho para
ir à Voluntários, uma das poucas ruas calçadas do bairro, nas matinês do cine
Orion.
Meu
figurino era feito por minha mãe: uma camisa clara, bem limpa e passadinha com
ferro de brasa. Com meus colegas ia ver o que estava em cartaz. Bangue-bangue
era o melhor. Lembro-me do Buck Jones, do Rin Tin Tin, do Roy Rogers e mais uma
porção daqueles bambas do momento. Também me recordo do cine Vogue e de Seu
Carvalho, seu dono e operador, que, ao constatar a enorme fila na bilheteria,
dizia para nós, garotos, com certo orgulho solene, só haver lugares em pé.
Entrávamos mesmo assim. Depois de alguns minutos já tínhamos nossos lugares
escolhidos e... sentados. No escurinho do filme começado, queimávamos um
barbante malcheiroso que fazia todo mundo desaparecer de nosso lugar preferido.
Comédia pura, não é?
Com
o passar dos anos, veio o tempo do trabalho para valer. De aprendiz de químico
tornei-me o titular na fábrica de perfumes dos libaneses. Fiz de tudo lá:
brilhantina, rouge, pó de arroz, produtos muito usados na época. Veio também o
tempo do namoro sério e, com ele, o cinema com sorvete a dois. Minha vida era
um filme de aventuras, mais que outra coisa. Tive de vencer muitos obstáculos.
E foi um bom tempo assim.
Construir
uma família não é fácil, mas, como se sabe, o amor sempre vence.
Como
nos filmes de amor, acabei me casando em technicolor e em cinemascope,
como um galã, com minha Mercedes, mais bonita que Greta Garbo ou qualquer outra
estrela de Hollywood. Com ela comecei a frequentar o centro de São Paulo. Íamos
de bonde elétrico, descíamos na Praça do Correio e andávamos de braços dados
pelos pontos mais elegantes da cidade.
Misturados
aos carros que pertenciam a gente muito rica, estavam os cabriolés, uma espécie
de carroça puxada a cavalos... Na Avenida São João estavam os melhores cinemas:
o Marabá, o Olido, com seus camarotes e frisas. Quantos filmes! O
Canal de Suez, O Morro dos Ventos Uivantes, E o Vento
Levou! Vejo-nos direitinho, como em um musical, indo para a cidade
de bonde. O condutor, o Delmiro, mais parecia um bailarino, um Fred Astaire
tropical, por conta dos trejeitos, malabarismos de corpo que fazia ao parar,
descer, cumprimentar, receber as pessoas, acomodá-las e, enfim, conduzir o
bonde.
Era
mais que um motorneiro. Esse era um show à parte!
Se
bem me lembro, o cinema me acompanhou a vida inteira. Isso porque sou do tempo
do cinema mudo, veja você, onde os violinos e o piano faziam nossa imaginação
ouvir as vozes e sentir as emoções dos artistas que passavam rápidos nas telas.
Depois veio o cinema falado e para nós isso era a maior e a melhor invenção.
Olhando para o que se passou, constato que fui um bom frequentador das telas.
Com chuva ou com sol!
Até
nossa primeira filha, com poucos meses de idade, não impedia nossa diversão
preferida! Era nossa figurante proibida. Íamos ao Bom Retiro, ao cine Lux. Lá
eu conhecia todo mundo e sentávamos com a menina nos braços bem na última fila,
caso precisássemos sair às pressas para acalmar um choro repentino. Assistimos
a tantas histórias e nossa menina dormia profundamente. Quase sempre.
Talvez
por conta do trabalho, das exigências da vida, dos cuidados com a família e
mesmo com a facilidade da televisão, acabei me dando conta de que fiquei muito
tempo sem ir ao cinema. Engraçado, agora que estou praticamente sozinho, em
consequência das perdas que a vida nos traz, o cinema volta com toda a força.
Não perco quase nada do que passa nos shoppings perto de casa.
Tudo é mais confortável, imenso. Mas tudo é mais barulhento, apressado e real
demais. Não sobra muito tempo para sonharmos.
Mesmo
assim, quero ir a outros cinemas desta cidade que cresceu e cresce tanto. O
jeito é me armar de um celular para que minha filha não fique tão preocupada
comigo por causa dessas minhas novas aventuras cinematográficas.”
Quando
releio o que está escrito, não sei onde está o que o seu Amalfi me contou e
onde está o que projetei de sua vida em mim. Engraçado mesmo! Perdi-me nos
labirintos da imaginação, onde o presente e o passado se fundem em um só
desenho. A memória brinca com o tempo, como em um filme, como uma criança
feliz.
Texto
escrito com base no depoimento do sr. Amalfi Mansutti, 82 anos.
A saga da Nhecolândia
Roberto de Oliveira Campos
Surgiu
então a Nhecolândia, cujas peripécias eu ouvia, fascinado, como criança, nos
serões à luz do lampião, defendendo-me dos mosquitos, pólvoras e as mutucas na
Fazenda Alegria.
[...]
Meu
avô, Vicente Alexandre de Campos, ali se instalou para fundar uma fazenda — o
retiro Paraíso. As terras baixas da Nhecolândia, nome dado em homenagem ao
desbravador, abrangiam cerca de 23,5 mil quilômetros quadrados, mais de um
sexto dos 140 mil quilômetros quadrados que constituem o Pantanal
mato-grossense. Nheco comandou o que, por assim dizer, se poderia chamar uma
grande operação comunitária, fazendo doações de terras aos que se animassem a
participar da rude aventura.
[...]
Na
minha ótica de primeira infância, o Pantanal me parecia mais perigoso que belo.
Tinha medo de cobras (a jararaca, a cascavel e a sucuri) e das onças (parda e
pintada), então abundantes nas várzeas e capões. A suprema forma de coragem era
a caçada de onça com zagaia. Também levara o susto da piranha, quando
entrei desprevenido na baía adjacente à Fazenda
Alegria. Quase perdi o dedão do pé direito. Era infernal o incômodo dos
mosquitos, os pólvoras e as mutucas. Nas longas viagens de carros de boi,
comia-se carne-seca e farinha de mandioca, ou assava-se um pacu pescado no rio.
Bebia-se de manhã o “tererê”, o guaraná ralado em língua de pirarucu. De vez em
quando se matava um boi para o churrasco. O pacu era o peixe favorito e
democrático, pois de fácil pesca.
—
Pacuzão para os ricos, pacuzinho para os pobres, pacu pra nós todos, era o
refrão dos vaqueiros.
As
bebidas eram o guaraná ralado e o indefectível chimarrão.
[...]
As
belezas do Pantanal, com seus corixos, baías e várzeas, que no começo das
chuvas pareciam jardins formais, com riqueza de flora e fauna, só entrariam na
minha percepção trinta anos mais tarde, quando voltei, como superintendente do
BNDE, ciceroneando uma turma de banqueiros do Eximbank, de Washington.
A lanterna na popa. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1994.
Nas ondas do rádio
Edson Gabriel Garcia
Cheguei
a Nova Granada de manhãzinha, quase escuro, quase claro, a noite indo embora
sem pressa e o dia, menos apressado ainda, dando as caras. Passei a alça da
mochila pelo ombro e comecei a caminhar na direção da casa de meus pais,
localizada no centro da cidade, para uma visita de carinho e saudade. O trajeto
me obrigava a passar pela Igreja Matriz e pela praça central, uma seguida pela
outra, ambas locais que agitavam minhas lembranças dos tempos da juventude que lá
vivi. Dessa vez, qual não foi minha surpresa ao ver que a querida praça havia
sumido e em seu lugar restava apenas uma quadra inteira de terra vermelha
arrasada, alguns montes de pedra, areia e blocos de concreto. Quase morri de
susto, depois de raiva. Como puderam fazer aquilo com a minha praça? Bem...
assim que me assentei na casa dos velhos, saí para rever amigos, os poucos que
sobraram tanto tempo depois. Acabei chegando à barbearia do Chico, o rei da
tesoura, mais de cinquenta anos fazendo barba e cabelo de muitas gerações
granadenses. O salão do Chico tornara-se uma espécie de registro oral das
lembranças locais. E foi lá que eu encontrei o Edinho da dona Judi, velho amigo
cinquentão, um dos poucos da minha turma de juventude que, mais corajoso de todos,
resolveu ficar e tocar sua vida lá. Desabafei com o Edinho minha insatisfação
com a praça.
E
ele, calmo, como se pensasse um dia para escolher cada palavra.
—
Pois é... coisa de política... logo tem eleição...
—
E, quando tem eleição, a história da cidade vai pro espaço!? — comentei
irritado.
—
Pois é... que falta faz o Padre Miguel Lucas nessas horas...
Padre
Miguel Lucas: o Edinho foi buscar essa lembrança lá nos idos finais dos anos
sessenta. O jovem padre espanhol, pouco tempo de Brasil, que chegara a Nova
Granada com rezas intensas e ideias novas.
—
Você se lembra dele? Da casa paroquial, da rádio...
Claro
que me lembrei dele. Dele e da emissora de rádio.
Ao
falar da emissora de rádio, os olhos castanhos cor de mel do Edinho brilharam.
Ele tinha sido personagem central na criação e no funcionamento da primeira
emissora de rádio de Nova Granada. De locutor, criador de programas e textos de
propaganda, ele tinha feito tudo, ou quase tudo.
“A
primeira vez que o padre Miguel falou de instalar uma rádio na cidade, os olhos
de todo mundo perguntaram o que, como, quando, por quê... E o padre, em seu
portunhol delicado, foi respondendo e explicando: aqui, em uma das salas da
casa paroquial; comprando e instalando um aparelho retransmissor de ondas
sonoras; transmitir programas de música, esportes, notícias, missas... A gente
só estava acostumado a ouvir rádio de cidade grande. Tupi e Bandeirantes de São
Paulo, no máximo a Independência de São José do Rio Preto... Uma rádio em Nova
Granada? Parecia coisa de outro mundo!”
Fui
lembrando e vendo as imagens antigas desfilarem ali no zunzunzum do pequeno
auditório improvisado no salão do Chico.
“Em
pouco tempo a cidade inteira havia comprado a ideia. O nome, depois de muitas
sugestões, acabou ficando Rádio Educadora Granadense, uma mistura de intenções
e desejos religiosos, educativos e artísticos. O retransmissor chegou, cara de
objeto não identificado, e foi instalado na sala da frente da casa paroquial.
Além dos botões de comando, dois toca-discos, conhecidos por pratos, e um
microfone, parecido com aquele que vinha estampado na antiga Revista
do Rádio, tudo instalado em uma mesa ampla e grande.
Todo
mundo doou discos para a Rádio. Ela começou com mais de mil discos. Teve gente
que tirou do baú verdadeiras relíquias, gravações de setenta e oito rotações,
aqueles bolachões pretos e duros, com seus cantores preferidos: Francisco
Alves, Anísio Silva, Trio Irakitan, Cascatinha e Inhana... Era uma época de
transição dos discos de quarenta e cinco rotações, sucessores dos antigos
bolachões de setenta e oito, para os mais modernos de trinta e três rotações,
que começavam a dominar o mercado. Foi nesse primeiro arrastão de doações que
eu peguei um compacto duplo de um cantor quase desconhecido por aqui, chamado
Roberto Carlos, que depois acabou virando o maior vendedor de disco do país. Splish
plash, um dos seus primeiros sucessos! Lembrei-me do primeiro
sucesso nas ondas da Rádio Educadora Granadense, uma música francesa, Ma
vie, cantada por um tal de Alain Barrière. Às vezes, a cidade
parecia um único e grande alto-falante: todas as casas com seus rádios ligados
na nossa Educadora e a mesma música repetida em alto e bom som invadia o
espaço.”
No
meio dessas lembranças gostosas, deixei escapar um sorriso maroto e trouxe de volta
uma história inesquecível.
“Nunca
vou me esquecer desse fato. Eu estava apresentando um programa e de repente fui
atacado por uma desinteria daquelas... Daquelas que apertam o intestino, dá um
nó nas tripas, faz você suar e, em segundos, você tem que achar um banheiro
para atender o chamado urgente da natureza. E foi o que eu fiz. Coloquei um LP
no prato, acho que um dos sucessos As 14 mais da gravadora
CBS, e falei para alguém que estava na sala comigo: dê uma olhada aí que eu vou
procurar um banheiro para fazer cocô... Até aí tudo bem, não fosse o microfone
estar ainda ligado e todos os rádios, dos santos lares granadenses, receberem a
minha sacrossanta informação. Foi o escândalo do mês: o filho do seu Lico, um
bom menino, de família tradicional, tinha usado as ondas da rádio do padre para
anunciar que ia fazer cocô...”
Bem...
minhas memórias radiofônicas pararam por aí. Depois disso, ficamos apenas
lembrando bobagens, artes, farras, enganos, estripulias e sacanagens dos nossos
tempos de juventude Jovem Guarda.
Eu
acabei esquecendo da praça arrasada e da emissora de rádio do padre.
Interessante notar que uma cidade que tem um salão como o do Chico Barbeiro
jamais terá suas memórias esquecidas. Ali sempre aparecerá alguém, como eu,
sempre pronto para avivá-las e transmiti-las aos mais novos ou mais velhos e
esquecidos.
Edson
Gabriel Garcia. Nas ondas do rádio, fevereiro de 2004.
o texto " galinha ao molho pardo " é narrativo ou descritivo
ResponderExcluirNarrativo
ExcluirLegal né
ResponderExcluirGraças a Deus eu achei esse livro para o meu trabalho de 🏫
ResponderExcluirEscola
ExcluirAdorei trabalhar com esses textos sobre memorias!! Meus alunos aprovaram e gostaram, muito.
ResponderExcluirOS TEXTOS SÃO MUITO IMPORTANTES E FAVORECEM UM ENTENDIMENTO MELHOR AOS ALUNOS.
ResponderExcluirPau no cu de quem tá lendo
ResponderExcluirKKKKKKK, Auge o auge
ExcluirSHUASHUASHUAHSUAHSUAHUHSUAH
Excluireu achei muito legal esse texto adorei
ExcluirIdentificar os seguintes elementos da narrativa
ResponderExcluirÉ muito legal mesmo
ResponderExcluirLegal
ResponderExcluirLegal
ResponderExcluirAmei
ResponderExcluirLegal
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