A última crônica
Fernando Sabino
A
caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao
balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me
assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta
busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas
recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da
convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao
episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer
nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples
espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a
cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança:
“assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto.
Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma
crônica.
Ao
fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas
de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na
contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma
negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre,
que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr
os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em
torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo,
porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo
a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do
bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão
um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente
ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o
pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando
para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado
o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção
do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro,
apenas uma pequena fatia triangular.
A
negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho
que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três,
pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na
bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de
uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um
animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São
três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do
bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as
velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e
sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito
compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos:
“Parabéns pra você, parabéns pra você...”. Depois a mãe recolhe as velas, torna
a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos
sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura —
ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao
colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer
intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos
olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a
cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim
eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.
Elenco de cronistas modernos. 21ª ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2005.
A Rua do Ouvidor
Joaquim Manuel de Macedo
A Rua do
Ouvidor contou diversas lojas de perfumarias, e,
por consequência, devia ser a rua mais cheirosa, mais perfumada entre todas as
da cidade do Rio de Janeiro.
E
todavia não o era!...
Com
efeito não havia nem há rua mais opulenta de aromas, de perfumes, de pastilhas
odoríferas, de banhas e de pomadas de ótimo cheiro; mas tudo isso encerrado em
vidrinhos, em frascos e em pequenas caixas bonitas que mantinham e mantêm a Rua
do Ouvidor tão inodora como as outras de dia.
Atualmente
de noite observa-se o mesmo fato.
Naquele
tempo, porém, isto é, nos tempos do Demarais, e ainda depois,
a Rua do Ouvidor, de fácil e reta comunicação com
a praia, era uma das mais frequentadas pelos condutores dos repugnantes barris,
das oito horas da noite até às dez.
A
esses barris asquerosos o povo deu a denominação geralmente adotada de - tigres
- pelo medo explicável que todos fugiam deles.
Esse ruim costume do passado me traz à memória informação falsa e ridícula que
li, e caso infeliz e igualmente ridículo, de que fui testemunha ocular e nasal
em 1839, no meu saudoso tempo de estudante.
A
informação é a seguinte:
Um
francês (viajante charlatão) passou pela cidade do Rio
de Janeiro, e demorando-se nela alguns dias, ouviu dos patrícios da Rua do
Ouvidor queixas dos incômodos tigres que frequentes passavam ali de noite.
Sábio e consciencioso observador que era, o viajante tomou nota do ato, e
poucos anos depois publicou, no seu livro de viagens, esta famosa notícia:
“Na
cidade do Rio de Janeiro, capital do Império do Brasil, feras terríveis, os
trigraves, vagam, durante a noite, pelas ruas, etc., etc.!!!”
E
é assim que escreve a história!
O
caso que observei foi desastroso, mas de natureza que fez rir a todos.
Pouco
depois das oito horas da noite, um inglês, trajando casaca preta e gravata
branca...
Entre
parêntese.
Em
1839 ainda era de uso ordinário e comum a casaca; o reinado de paletó
começou depois; muitos estudantes iam às aulas de casacas, e não havia senador
nem deputado que se apresentasse desacasacado nas
respectivas Câmaras: o paletó tornou-se eminentemente parlamentar de 1845 em
diante.
Fechou-se
o parênteses.
O
inglês de chapéu de patente, casaca preta e
gravata branca subia pela Rua do Ouvidor, quando
encontrou um negro que descia, levando à cabeça um tigre
para despejá-lo no mar.
O
pobre africano ainda a tempo recuou um passo, mas o inglês que não sabia recuar
avançou outro; o condutor do tigre encostou-se à parede
que lhe ficava à mão direita, e o inglês supondo-se desconsiderado por um negro
que lhe dava passo à esquerda pronunciou a ameaçadora palavra goodemi,
e sem mais tir-te nem guar-te honrou com um soco britânico a face do africano,
que perdendo o equilíbrio pelo ataque e pela dor, deixou cair o tigre para
diante e naturalmente de boca para baixo.
Ah! Que não sei
de nojo como o conte!
O
Tigre
ou o barril abismou em seu bojo o chapéu e a cabeça e inundou com o seu
conteúdo a casaca preta, o colete e as calças do inglês.
O
negro fugiu acelerado, e a vítima de sua própria imprudência, conseguindo
livrar-se do barril, que o encapelara, lançou-se a correr atrás do africano,
sacudindo o chapéu em estado indizível, e bradando
furioso:
— Pegue ladron!
Pegue ladron!...
Mas
qual - pega ladron! -: todos se arredavam de inocente
e malcheiroso negro que fugia, e ainda mais o inglês, tornado tigre pela
inundação que recebera.
Era
geral o coro de risadas na Rua do Ouvidor.
O
inglês, perdendo enfim de vista o africano, completou o caso com um remate pelo
menos tão ridículo como o seu desastre. Voltando rua acima, parou em frente de
numeroso grupo de gente que testemunhara a cena, e ria-se dela.
Ainda
hoje o estou vendo; o inglês parou, e sempre a sacudir o chapéu olhou iroso
para o grupo e disse mas disse com orgulhosa gravidade britânica:
—
Amanhã faz queixa a ministro da Inglaterra, e há de ter indenização de chapéu e
de casaca perdidas.
Ah!
Eu creio que então a melhor das risadas que romperam foi a minha gostosa, longa
e repetida risada de estudante feliz e alegrão.
É inútil dizer que não houve questão diplomática. A Inglaterra ainda não se
tinha feito representar no Brasil por Mr. Christie, o único
capaz (depois do jantar) de exigir indenização do chapéu e da casaca que o
patrício perdera.
Não
foi este único desastre que os tigres ocasionaram, foram muitos e todos mais ou
menos grotescos, e sei de um outro (além da encapelação do inglês) ocorrido na
Rua do Carmo hoje Sete de Setembro, que de súbito desfez as mais doces
esperanças do casamento inspirado e desejado por mútuo amor.
O
namorado era estudante, meu colega e amigo; estava perdidamente apaixonado por
uma viúva, viuvinha de dezoito anos, e linda como os amores.
Uma
noite, a bela senhora estava à janela, e à luz de fronteiro lampião viu o
namorado que, aproveitando o ponto do mais vivo clarão iluminador, lhe
mostrava, levando-o ao nariz, um raminho de lindas flores, que ia enviar-lhe,
quando nesse momento o cego apaixonado esbarrou com um condutor de tigre, e,
embora não encapelado, foi quase tão infeliz como o inglês.
O
pior do caso foi que a jovem adorada incorreu no erro quase inevitável de
desatar a rir, e logo depois de fugir da janela por causa do mau cheiro de que
se encheu a rua.
O
namorado ressentiu-se do rir impiedoso da sua esperançosa e querida noiva;
amoroso, porém, como estava, dois dias depois tornou a passar diante das
queridas janelas.
No
erro; a formosa viúva, ao ver o estudante, saudou-o doce, ternamente, mas levou
o lenço a boca para dissimular o riso lembrador de ridículo infortúnio.
O
estudante deu então solene cavaco, e não apareceu mais à bela viuvinha.
Um
tigre matou aquele amor.
Memórias
da Rua do Ouvidor. Rio
de Janeiro: Perseverança, 1878.
Ser brotinho
Paulo Mendes Campos
Ser
brotinho não é viver em um píncaro azulado: é muito mais! Ser brotinho é sorrir
bastante dos homens e rir interminavelmente das mulheres, rir como se o
ridículo, visível ou invisível, provocasse uma tosse de riso irresistível.
Ser
brotinho é não usar pintura alguma, às vezes, e ficar de cara lambida, os
cabelos desarrumados como se ventasse forte, o corpo todo apagado dentro de um
vestido tão de propósito sem graça, mas lançando fogo pelos olhos. Ser brotinho
é lançar fogo pelos olhos.
É
viver a tarde inteira, em uma atitude esquemática, a contemplar o teto, só para
poder contar depois que ficou a tarde inteira olhando para cima, sem pensar em
nada. É passar um dia todo descalça no apartamento da amiga comendo comida de
lata e cortar o dedo. Ser brotinho é ainda possuir vitrola própria e perambular
pelas ruas do bairro com um ar sonso-vagaroso, abraçada a uma porção de elepês
coloridos. É dizer a palavra feia precisamente no instante em que essa palavra
se faz imprescindível e tão inteligente e superior. É também falar legal
e bárbaro com um timbre tão por cima das vãs
agitações humanas, uma inflexão tão certa de que tudo neste mundo passa
depressa e não tem a menor importância.
Ser
brotinho é poder usar óculos enormes como se fosse uma decoração, um adjetivo
para o rosto e para o espírito. É esvaziar o sentido das coisas que os coroas
levam a sério, mas é também dar sentido de repente ao vácuo absoluto. Aguardar
na paciente geladeira o momento exato de ir à forra da falsa amiga. É ter a
bolsa cheia de pedacinhos de papel, recados que os anacolutos tornam
misteriosos, anotações criptográficas sobre o tributo da natureza feminina, uma
cédula de dois cruzeiros com uma sentença hermética escrita a batom, toda uma
biografia esparsa que pode ser atirada de súbito ao vento que passa. Ser
brotinho é a inclinação do momento.
É
telefonar muito, demais, revirando-se no chão como dançarina no deserto
estendida no chão. É querer ser rapaz de vez em quando só para vaguear sozinha
de madrugada pelas ruas da cidade. Achar muito bonito um homem muito feio;
achar tão simpática uma senhora tão antipática. É fumar quase um maço de
cigarros na sacada do apartamento, pensando coisas brancas, pretas, vermelhas,
amarelas.
Ser
brotinho é comparar o amigo do pai a um pincel de barba, e a gente vai ver está
certo: o amigo do pai parece um pincel de barba. É sentir uma vontade doida de
tomar banho de mar de noite e sem roupa, completamente. É ficar eufórica à
vista de uma cascata. Falar inglês sem saber verbos irregulares. É ter comprado
na feira um vestidinho gozado e bacanérrimo.
É
ainda ser brotinho chegar em casa ensopada de chuva, úmida camélia, e dizer
para a mãe que veio andando devagar para molhar-se mais. É ter saído um dia com
uma rosa vermelha na mão, e todo mundo pensou com piedade que ela era uma louca
varrida. É ir sempre ao cinema, mas com um jeito de quem não espera mais nada
desta vida. É ter uma vez bebido dois gins, quatro uísques, cinco taças de
champanha e uma de cinzano sem sentir nada, mas ter outra vez bebido só um
cálice de vinho do Porto e ter dado um vexame modelo grande. É o dom de falar
sobre futebol e política como se o presente fosse passado, e vice-versa.
Ser
brotinho é atravessar de ponta a ponta o salão da festa com uma indiferença
mortal pelas mulheres presentes e ausentes. Ter estudado ballet
e desistido, apesar de tantos telefonemas de Madame Saint-Quentin. Ter trazido
para casa um gatinho magro que miava de fome e ter aberto uma lata de salmão
para o coitado. Mas o bichinho comeu o salmão e morreu. É ficar pasmada no
escuro da varanda sem contar para ninguém a miserável traição. Amanhecer
chorando, anoitecer dançando. É manter o ritmo na melodia dissonante. Usar o
mais caro perfume de blusa grossa e blue-jeans. Ter horror de gente
morta, ladrão dentro de casa, fantasmas e baratas. Ter compaixão de um só
mendigo entre todos os outros mendigos da Terra. Permanecer apaixonada a
eternidade de um mês por um violinista estrangeiro de quinta ordem.
Eventualmente, ser brotinho é como se não fosse, sentindo-se quase a cair do
galho, de tão amadurecida em todo o seu ser. É fazer marcação cerrada sobre a
presunção incomensurável dos homens. Tomar uma pose, ora de soneto moderno, ora
de minueto, sem que se dissipe a unidade essencial. É policiar parentes,
amigos, mestres e mestras com um ar songamonga de quem nada vê, nada ouve, nada
fala.
Ser
brotinho é adorar. Adorar o impossível. Ser brotinho é detestar. Detestar o
possível. É acordar ao meio-dia com uma cara horrível, comer somente e
lentamente uma fruta meio verde, e ficar de pijama telefonando até a hora do
jantar, e não jantar, e ir devorar um sanduíche americano na esquina, tão
estranha é a vida sobre a Terra.
O cego de Ipanema. Rio de Janeiro:
Editora do Autor, 1960.
Quem tem medo de mortadela?
Mário Prata
Modismo
é conosco mesmo. O brasileiro adora inventar moda. E todo mundo vai atrás dela.
A última do brasileiro é “primeiro mundo”. Os publicitários nativos inventaram
a expressão e agora tudo que nós queremos tem que ser coisa do “primeiro
mundo”.
O
carro é do primeiro mundo, a bebida é do primeiro mundo, a mulher é do primeiro
mundo. Cineastas querem fazer filme de primeiro mundo, diretores de teatro
trazem a moda lá da Europa. E os preços, evidentemente, também são de primeiro
mundo.
Será
que não nos bastam os exemplos de Portugal, Espanha, Irlanda e Grécia, que se
debruçaram na mamata da CEE e agora enfrentam uma séria recessão e desemprego?
Por
que essa mania, de repente, de querer virar primeiro mundo? De terceiro para
primeiro? Não seria o caso de fazer um estágio, antes, no segundo mundo?
Os
do primeiro mundo adoram as coisas aqui do terceiro. Por exemplo, a caipirinha.
Alemães, ingleses, americanos, suecos caem trôpegos pelas calçadas de
Copacabana. Quer coisa rnais brasileira, mais terceiromundista, mais caipira e
mais barata? Mas já estão avacalhando com ela. Agora já tem caipirinha de vodca
e, pasmem, de rum. Caipirinha sempre foi e sempre será de cachaça. Coisa de
caipira mesmo. E é esta bebida que os europeus vêm procurar aqui. Mas já
meteram a vodca e o rum nela para ficar com cara de primeiro mundo. Vamos
deixar a caipirinha caipira, brasileiros!
Toda
essa introdução para chegar à mortadela. Ou mortandela, como preferem garçons e
padeiros. Quer coisa mais brasileira que a mortadela? Claro que ela veio lá da
Itália. Mas tornou-se, talvez pelo baixo preço, o petisco do brasileiro. O nome
vem de murta, uma plantinha italiana que lhe valeu o nome. Infelizmente o
brasileiro acha que mortadela é coisa de pobre, de faminto. E o que somos nós,
cara-pálidas?
A
cachaça e a mortadela são produtos do Brasil, do nosso querido terceiro mundo.
Mas acontece que há um preconceito dos patrícios contra a cachaça e a
mortadela. Contra a mortadela o caso é mais grave. Se você oferecer mortadela
numa festa, vão te olhar feio. Você deve estar perto da falência.
Neste
Natal e no Reveillon frequentei várias mesas, e em nenhuma havia mortadela.
Queijos de primeiro mundo, vinho de primeiro mundo, perfumes de primeiro mundo,
até um peru argentino eu comi. Mas mortadela que é bom, nada. Nem uma
fatiazinha.
Quando
o brasileiro irá assumir que a mortadela é a melhor entrada do mundo? Quando
você for para a Europa, não adianta pedir dead her que não vai encontrar. Nem
muerta dela.
Mas
nem tudo está perdido. No dia 1° do ano almocei com o casal Annette e Tenório
de Oliveira Lima, e lá estava a mortadela, fresquinha no prato rósea. Um
limãozinho em cima, um pedacinho de pão e viva o terceiro mundo, visto lá de
cima do apartamento do Morumbi.
No
mesmo dia, de noite, fui ao peemedebista Bar Nabuco, debaixo de frondosas
sibipirunas da Praça Vilaboim e estava lá, no cardápio, toda sem-vergonha, a
mortadela brasileira. Achei que estava começando bem o ano. Vai ser um Ano Bom,
como se dizia antigamente. Se os novos-ricos do PMDB estão comendo mortadela,
nem tudo está perdido. No Gargalhada Bar mais para PT, há um excelente
sanduíche de mortadela.
E,
nas boas padarias do ramo você ainda encontra a verdadeira mortadela, aquela
que chega no balcão, feita na chapa, sem queimar muito, servida em pãezinhos
saídos do forno.
Vamos
deixar o primeiro mundo para lá. Vamos, este ano, tomar cachaça e comer
mortadela. É muito mais barato ser pobre. Deixemos que o primeiro mundo exploda
entre eles, mesmo tomando uísque escocês e comendo queijo fedido.
Por
favor senhores brasileiros primeiro-mundistas, vamos deixar de frescura.
Mortadela é o que há. É um barato.
Feliz
94 para todos vocês. Muita cachaça e muita mortadela. Apesar de tudo, o
primeiro mundo é triste e melancólico. Continuemos felizes e alegres com a
nossa cachaça e a nossa gostosa mortadela.
E
que os candidatos à presidência deste nosso país do terceiro mundo não se
esqueçam que o Jânio sempre se elegeu comendo “mortandela” e não caviar do
primeiro mundo.
Publicada
no jornal O Estado de S.
Paulo, 5/1/1994.
A arte de ser avó
Rachel de Queiroz
Netos
são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de
repente lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses, um ato de Deus. Sem se
passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da
maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o
neto é realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho que o filho
mesmo...
Quarenta
anos, quarenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo
passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A
velhice tem suas alegrias, as suas compensações - todos dizem isso, embora
você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.
Todavia,
também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela
nostalgia da mocidade. Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não
lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e
lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço.
Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para
onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são
os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações,
você não encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e
mulheres - não são mais aqueles que você recorda.
E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação
ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis -
nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choros, aquela criancinha da sua
raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida.
Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino seu que lhe é
“devolvido”. E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar
com extravagância; ao contrário, causaria escândalo e decepção se você não o
acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava,
desdenhado, no seu coração.
Sim,
tenho certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as
mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes, que
vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixados pelos arroubos juvenis.
[...]
E
quando você vai embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe
reconhece, sorri e diz: “Vó!”, seu coração estala de felicidade, como pão ao
forno.
[...]
Até
as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto:
o bibelô de estimação que se quebrou porque o menininho - involuntariamente! -
bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas
recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beiço pronto para o
choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque “ninguém” se zangou, o
culpado foi a bola mesmo, não foi, Vó? Era um simples boneco que custou caro.
Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague...
Elenco
de cronistas modernos. 21ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
Conformados
e realistas
Tostão
Fernando Calazans e poucos outros
jornalistas esportivos têm sido críticos e realistas sobre a qualidade e o
futuro do futebol brasileiro, da Seleção e dos clubes. Penso da mesma forma.
Estamos preocupados. Já a numerosa turma do oba-oba, também chamada de
otimista, acha que somos muito pessimistas.
Os conformados, os que têm pouco senso
crítico e também os modernistas, que são muito bem preparados cientificamente,
dizem que o futebol moderno é esse aí. Temos de engoli-lo. Tocar a bola e
esperar o momento certo para tentar fazer o gol virou sinônimo de lentidão.
Confundem modernidade com mediocridade.
Ninguém é tão ingênuo para achar que se
deve jogar hoje no estilo dos anos 60. O que queremos é ver mais qualidade. Não
podemos nos contentar com um futebol medíocre, quase só de jogadas aéreas e de
muita falta e correria. O encanto do futebol é outro.
Os jogadores são produzidos em série, para
exportação, como uma fábrica de parafusos. Os atletas de talento são colocados
na mesma linha de produção dos medíocres. Há mercado para todos. Aumentou a
quantidade e diminuiu a qualidade.
Nos últimos 14 anos, a Argentina ganhou
cinco mundiais sub-20 (acontecem de dois em dois anos), além de duas medalhas
de ouro nas Olimpíadas. O time que derrotou o Brasil tem sete jogadores da
equipe campeã mundial sub-20 em 2005.
Muitos vão dizer, com um ótimo argumento,
que nesse período, o Brasil ganhou duas copas do mundo e mais um vice, enquanto
a Argentina não venceu nada. A razão disso é óbvia. A Argentina não teve um
único fenômeno nesses 14 anos, até chegar Messi. Já o Brasil teve Romário,
Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho e Kaká. Todos os cinco ganharam o título de melhor
do mundo.
Os fenômenos, em todos os esportes,
dependem muito menos das condições em que são treinados. Eles não têm
explicação. Mas não se pode depender tanto deles. É preciso criar boas
estruturas e estratégias para formar um número maior de excelentes atletas.
Esses têm diminuído no futebol brasileiro.
Muitos treinadores brasileiros conhecem
tudo de esquema tático, de estatísticas, dos adversários, porém conhecem pouco
as sutilezas e subjetividades. Não são bons observadores.
Quem não sabe ver não sabe nada. Eles se
preocupam mais com seus esquemas táticos que com a qualidade do jogo e se os
melhores jogadores estão nos lugares certos.
Há exceções. Enfim, apareceu um técnico
brasileiro que colocou Carlos Alberto na posição certa, se movimentando na
frente, por todos os lados, e mais perto do gol, onde pode e deve driblar. Assim
ele jogou no Porto com José Mourinho. Carlos Alberto não é armador,
organizador, como atuava.
Felipão estava louco para ver Robinho no
Chelsea porque precisa de um atacante rápido, habilidoso, que joga melhor pelos
lados e que é capaz de marcar no próprio campo e aparecer com facilidade no
ataque. Robinho é um desses raros jogadores. Se Felipão fosse treinador da
Seleção, certamente faria o mesmo.
O
Povo Online, 30/8/2008. Disponível em
<www.opovo.uol.com.br/opovo/colunas/tostao/816045.html>.
Peladas
Armando Nogueira
Esta
pracinha sem aquela pelada virou uma chatice completa: agora, é uma babá que
passa, empurrando, sem afeto, um bebê de carrinho, é um par de velhos que troca
silêncios num banco sem encosto.
E,
no entanto, ainda ontem, isso aqui fervia de menino, de sol, de bola, de sonho:
“Eu jogo na linha! eu sou o Lula!; no gol, eu não jogo, tô com o joelho ralado
de ontem; vou ficar aqui atrás: entrou aqui, já sabe”. Uma gritaria, todo mundo
se escalando, todo mundo querendo tirar o selo da bola, bendito fruto de uma
suada vaquinha.
Oito
de cada lado e, para não confundir, um time fica como está; o outro joga sem
camisa.
Já
reparei uma coisa: bola de futebol, seja nova, seja velha, é um ser muito
compreensivo que dança conforme a música: se está no Maracanã, numa decisão de
título, ela rola e quiçá com um ar dramático, mantendo sempre a mesma pose
adulta, esteja nos pés de Gérson ou nas mãos de um gandula.
Em
compensação, num racha de menino ninguém é mais sapeca: ela corre para cá,
corre para lá, quica no meio-fio, para de estalo no canteiro, lambe a canela de
um, deixa-se espremer entre mil canelas, depois escapa, rolando, doida, pela
calçada. Parece um bichinho.
Aqui,
nessa pelada inocente é que se pode sentir a pureza de uma bola. Afinal,
trata-se de uma bola profissional, uma número cinco, cheia de carimbos
ilustres: “Copa Rio-Oficial”, “FIFA — Especial”. Uma bola assim, toda de
branco, coberta de condecorações por todos os gomos (gomos hexagonais!), jamais
seria barrada em recepção do Itamaraty.
No
entanto, aí está ela, correndo para cima e para baixo, na maior farra do mundo,
disputada, maltratada até, pois, de quando em quando, acertam-lhe um bico, ela
sai zarolha, vendo estrelas, coitadinha.
Racha
é assim mesmo: tem bico, mas tem também sem-pulo de craque como aquele do Tona,
que empatou a pelada e que lava a alma de qualquer bola. Uma pintura.
Nova
saída.
Entra
na praça batendo palmas como quem enxota galinha no quintal. É um velho com
cara de guarda-livros que, sem pedir licença, invade o universo infantil de uma
pelada e vai expulsando todo mundo. Num instante, o campo está vazio, o mundo
está vazio. Não deu tempo nem de desfazer as traves feitas de camisas.
O
espantalho-gente pega a bola, viva, ainda, tira do bolso um canivete e dá-lhe a
primeira espetada. No segundo golpe, a bola começa a sangrar. Em cada gomo o
coração de uma criança.
Os melhores da crônica brasileira. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1977.
O amor acaba
Paulo Mendes Campos
O
amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de
teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro
onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva
contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de
cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite
votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no
cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois
polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na
insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante
do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no
olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos
braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres;
mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da
irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania¹ da pretensão ridícula dos
bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a
alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra
coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no
sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas
vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo
parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em
apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais
encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo
imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e
desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus,
ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor
se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em
Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso;
em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta
que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes
acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos
cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e
acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se
dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo
périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba
depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela
que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de
bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue
consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode
acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor;
na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da
primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno;
em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer
motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o
amor acaba.
1. No
sentido literário, epifania é um momento privilegiado de revelação quando
ocorre um evento que “ilumina” a vida da personagem.
O amor acaba - Crônicas líricas e
existenciais.
2ª- ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
Um caso de burro
Machado de Assis
Quinta-feira
à tarde, pouco mais de três horas, vi uma coisa tão interessante, que
determinei logo de começar por ela esta crônica. Agora, porém, no momento de
pegar na pena, receio achar no leitor menor gosto que eu para um espetáculo,
que lhe parecerá vulgar, e porventura torpe. Releve a importância; os gostos
não são iguais.
Entre
a grade do jardim da Praça Quinze de Novembro e o lugar onde era o antigo
passadiço, ao pé dos trilhos de bondes, estava um burro deitado. O lugar não
era próprio para remanso de burros, donde concluí que não estaria deitado, mas
caído. Instantes depois, vimos (eu ia com um amigo), vimos o burro levantar a
cabeça e meio corpo. Os ossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos
fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mais tão frouxamente, que
parecia estar próximo do fim.
Diante
do animal havia algum capim espalhado e uma lata com água. Logo, não foi
abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou quem quer que seja que
o deixou na praça, com essa última refeição à vista. Não foi pequena ação. Se o
autor dela é homem que leia crônicas, e acaso ler esta, receba daqui um aperto
de mão. O burro não comeu do capim, nem bebeu da água; estava já para outros
capins e outras águas, em campos mais largos e eternos.
Meia
dúzia de curiosos tinha parado ao pé do animal. Um deles, menino de dez anos,
empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de dar com ela na anca do burro
para espertá-lo, então eu não sei conhecer meninos, porque ele não estava do
lado do pescoço, mas justamente do lado da anca. Diga-se a verdade; não o fez —
ao menos enquanto ali estive, que foram poucos minutos. Esses poucos minutos,
porém, valeram por uma hora ou duas. Se há justiça na Terra valerão por um século,
tal foi a descoberta que me pareceu fazer, e aqui deixo recomendada aos
estudiosos.
O
que me pareceu, é que o burro fazia exame de consciência. Indiferente aos
curiosos, como ao capim e à água, tinha no olhar a expressão dos meditativos.
Era um trabalho interior e profundo. Este remoque popular: por pensar morreu um
burro mostra que o fenômeno foi mal entendido dos que a princípio o viram; o
pensamento não é a causa da morte, a morte é que o torna necessário. Quanto à
matéria do pensamento, não há dúvidas que é o exame da consciência. Agora, qual
foi o exame da consciência daquele burro, é o que presumo ter lido no escasso
tempo que ali gastei. Sou outro Champollion, porventura maior; não decifrei
palavras escritas, mas ideias íntimas de criatura que não podia exprimi-las
verbalmente.
E
diria o burro consigo:
“Por
mais que vasculhe a consciência, não acho pecado que mereça remorso. Não
furtei, não menti, não matei, não caluniei, não ofendi nenhuma pessoa. Em toda
a minha vida, se dei três coices, foi o mais, isso mesmo antes haver aprendido
maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que é apanhar e
calar. Quando ao zurro, usei dele como linguagem. Ultimamente é que percebi que
me não entendiam, e continuei a zurrar por ser costume velho, não com ideia de
agravar ninguém. Nunca dei com homem no chão. Quando passei do tílburi ao
bonde, houve algumas vezes homem morto ou pisado na rua, mas a prova de que a
culpa não era minha, é que nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar
aguardando autoridade.”
“Passando
à ordem mais elevada de ações, não acho em mim a menor lembrança de haver
pensado sequer na perturbação da paz pública. Além de ser a minha índole
contrária a arruaças, a própria reflexão me diz que, não havendo nenhuma
revolução declarado os direitos do burro, tais direitos não existem. Nenhum
golpe de estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os obrigou. Monarquia,
democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta os interesses
da minha espécie. Qualquer que seja o regime, ronca o pau. O pau é a minha
instituição um pouco temperada pela teima que é, em resumo, o meu único
defeito. Quando não teimava, mordia o freio dando assim um bonito exemplo de
submissão e conformidade. Nunca perguntei por sóis nem chuvas; bastava sentir o
freguês no tílburi ou o apito do bonde, para sair logo. Até aqui os males que
não fiz; vejamos os bens que pratiquei.”
“A
mais de uma aventura amorosa terei servido, levando depressa o tílburi e o
namorado à casa da namorada — ou simplesmente empacando em lugar onde o moço
que ia ao bonde podia mirar a moça que estava na janela. Não poucos devedores
terei conduzido para longe de um credor importuno. Ensinei filosofia a muita
gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na quietação dos
sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscos, queria fazer rir os
amigos, fui sempre em auxílio deles, deixando que me dessem tapas e punhadas na
cara. Em fim...”
Não
percebi o resto, e fui andando, não menos alvoroçado que pesaroso. Contente da
descoberta, não podia furtar-me à tristeza de ver que um burro tão bom pensador
ia morrer. A consideração, porém, de que todos os burros devem ter os mesmos
dotes principais, fez-me ver que os que ficavam não seriam menos exemplares do
que esse. Por que se não investigará mais profundamente o moral do burro? Da
abelha já se escreveu que é superior ao homem, e da formiga também,
coletivamente falando, isto é, que as suas instituições políticas são
superiores às nossas, mais racionais. Por que não sucederá o mesmo ao burro,
que é maior?
Sexta-feira,
passando pela Praça Quinze de Novembro, achei o animal já morto.
Dois
meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo repugnante; mas a
infância, como a ciência, é curiosa sem asco. De tarde já não havia cadáver nem
nada. Assim passam os trabalhos deste mundo. Sem exagerar o mérito do finado,
força é dizer que, se ele não inventou a pólvora, também não inventou a
dinamite. Já é alguma coisa neste final de século. Requiescat in
pace.
Disponível
em <www.eeagorajose.kit.net/estilos/croassisburro.htm>.
Cobrança
Moacyr Scliar
Ela
abriu a janela e ali estava ele, diante da casa, caminhando de um lado para
outro. Carregava um cartaz, cujos dizeres atraíam a atenção dos passantes:
“Aqui mora uma devedora inadimplente.”
—
Você não pode fazer isso comigo — protestou ela.
—
Claro que posso — replicou ele. — Você comprou, não pagou. Você é uma devedora
inadimplente. E eu sou cobrador. Por diversas vezes tentei lhe cobrar, você não
pagou.
—
Não paguei porque não tenho dinheiro. Esta crise...
—
Já sei — ironizou ele. — Você vai me dizer que por causa daquele ataque lá em
Nova York seus negócios ficaram prejudicados. Problema seu, ouviu? Problema
seu. Meu problema é lhe cobrar. E é o que estou fazendo.
—
Mas você podia fazer isso de uma forma mais discreta...
—
Negativo. Já usei todas as formas discretas que podia. Falei com você,
expliquei, avisei. Nada. Você fazia de conta que nada tinha a ver com o
assunto. Minha paciência foi se esgotando, até que não me restou outro recurso:
vou ficar aqui, carregando este cartaz, até você saldar sua dívida.
Neste
momento começou a chuviscar.
—
Você vai se molhar — advertiu ela. — Vai acabar ficando doente.
Ele
riu, amargo:
—
E daí? Se você está preocupada com minha saúde, pague o que deve.
—
Posso lhe dar um guarda-chuva...
—
Não quero. Tenho de carregar o cartaz, não um guarda-chuva.
Ela
agora estava irritada:
—
Acabe com isso, Aristides, e venha para dentro. Afinal, você é meu marido, você
mora aqui.
—
Sou seu marido — retrucou ele — e você é minha mulher, mas eu sou cobrador
profissional e você é devedora. Eu a avisei: não compre essa geladeira, eu não
ganho o suficiente para pagar as prestações. Mas não, você não me ouviu. E
agora o pessoal lá da empresa de cobrança quer o dinheiro. O que quer você que
eu faça? Que perca meu emprego? De jeito nenhum. Vou ficar aqui até você
cumprir sua obrigação.
Chovia
mais forte, agora. Borrada, a inscrição tornara-se ilegível. A ele, isso pouco
importava: continuava andando de um lado para outro, diante da casa, carregando
o seu cartaz.
O imaginário cotidiano. São Paulo: Global,
2001.
O cajueiro
Rubem Braga
O
cajueiro já devia ser velho quando nasci. Ele vive nas mais antigas recordações
de minha infância: belo, imenso, no alto do morro atrás da casa. Agora vem uma
carta dizendo que ele caiu.
Eu
me lembro do outro cajueiro que era menor e morreu há muito tempo. Eu me lembro
dos pés de pinha, do cajá-manga, da grande touceira de espadas-de-são-jorge
(que nós chamávamos simplesmente “tala”) e da alta saboneteira que era nossa
alegria e a cobiça de toda a meninada do bairro porque fornecia centenas de
bolas pretas para o jogo de gude. Lembro-me da tamareira, e de tantos arbustos
e folhagens coloridas, lembro-me da parreira que cobria o caramanchão, e dos
canteiros de flores humildes, “beijos”, violetas. Tudo sumira; mas o grande pé
de fruta-pão ao lado da casa e o imenso cajueiro lá no alto eram como árvores
sagradas protegendo a família. Cada menino que ia crescendo ia aprendendo o
jeito de seu tronco, a cica de seu fruto, o lugar melhor para apoiar o pé e
subir pelo cajueiro acima, ver de lá o telhado das casas do outro lado e os
morros além, sentir o leve balanceio na brisa da tarde.
No
último verão ainda o vi; estava como sempre carregado de frutos amarelos,
trêmulo de sanhaços. Chovera: mas assim mesmo fiz questão de que Carybé subisse
o morro para vê-lo de perto, como quem apresenta a um amigo de outras terras um
parente muito querido.
A
carta de minha irmã mais moça diz que ele caiu numa tarde de ventania, num
fragor tremendo pela ribanceira; e caiu meio de lado, como se não quisesse quebrar
o telhado de nossa velha casa.
Diz
que passou o dia abatida, pensando em nossa mãe, em nosso pai, em nossos irmãos
que já morreram. Diz que seus filhos pequenos se assustaram; mas foram brincar
nos galhos tombados.
Foi
agora, em fins de setembro. Estava carregado de flores.
Setembro,
1954.
Cem
crônicas escolhidas. Rio
de Janeiro: José Olímpio, 1956.
A bola
Luis Fernando Verissimo
O
pai deu uma bola de presente ao filho. Lembrando o prazer que sentira ao ganhar
a sua primeira bola do pai. Uma número 5 sem tento oficial de couro. Agora não
era mais de couro, era de plástico. Mas era uma bola.
O
garoto agradeceu, desembrulhou a bola e disse “Legal!”. Ou o que os garotos
dizem hoje em dia quando gostam do presente ou não querem magoar o velho.
Depois começou a girar a bola, à procura de alguma coisa.
—
Como e que liga? — perguntou.
— Como, como é que liga? Não se liga.
O
garoto procurou dentro do papel de embrulho.
—
Não tem manual de instrução?
O
pai começou a desanimar e a pensar que os tempos são outros. Que os tempos são
decididamente outros.
—
Não precisa manual de instrução.
—
O que é que ela faz?
—
Ela não faz nada. Você é que faz coisas com ela.
—
O quê?
—
Controla, chuta...
—
Ah, então é uma bola.
—
Claro que é uma bola.
—
Uma bola, bola. Uma bola mesmo.
—
Você pensou que fosse o quê?
—
Nada, não.
O
garoto agradeceu, disse “Legal” de novo, e dali a pouco o pai o encontrou na
frente da tevê, com a bola nova do lado, manejando os controles de um
videogame. Algo chamado Monster Baú, em que times de monstrinhos disputavam a
posse de uma bola em forma de bip eletrônico na tela ao mesmo tempo que tentavam
se destruir mutuamente.
O
garoto era bom no jogo. Tinha coordenação e raciocínio rápido. Estava ganhando
da máquina.
O
pai pegou a bola nova e ensaiou algumas embaixadas. Conseguiu equilibrar a bola
no peito do pé, como antigamente, e chamou o garoto.
—
Filho, olha.
O
garoto disse “Legal”, mas não desviou os olhos da tela. O pai segurou a bola
com as mãos e a cheirou, tentando recapturar mentalmente o cheiro de couro. A
bola cheirava a nada. Talvez um manual de instrução fosse uma boa ideia,
pensou. Mas em inglês, para a garotada se interessar.
Comédias
para ler na escola.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
São Paulo: as pessoas de tantos lugares
Milton Hatoum
À
primeira vista, São Paulo assusta. Aos poucos, o susto cede ao fascínio, à
surpresa da descoberta de muitos lugares escondidos ou ocultados numa metrópole
da qual a natureza parece ter sido banida. Isto só em parte é verdade. Há
vários parques e jardins — Aclimação, Villa-Lobos, Burle Marx, Água Branca e
tantos outros —, sem contar o Ibirapuera, que simboliza uma promessa de
urbanismo mais civilizado, ou de um processo urbano mais humanizado, interrompido
pela ganância das construtoras e da especulação imobiliária em conluio com o
poder público municipal.
Esse
urbanismo desastroso e desumano é uma das características das cidades
brasileiras, em que os bons arquitetos não participam da intervenção na paisagem
urbana. Apesar das adversidades, um morador de São Paulo aprende a gostar da
metrópole. Já quase não se vê o céu de Sampa, mas há bairros que são pequenas
cidades, há ruas com um casario de uma outra época, com um ritmo de vida
próprio, como se outro tempo resistisse ao cerco dos arranha-céus horrorosos e
ao mundo das finanças e do consumo desenfreado.
Gosto
de passear pelo Cambuci, Belenzinho, Penha; Brás, Mooca, Tatuapé e Santana
ainda revelam muitos encantos, assim como a Estação da Luz e o Mercado
Municipal. No mundo grandioso da metrópole, pode-se descobrir uma série de
recantos: pequenas praças, um recorte de paisagem, um beco, um conjunto de
casas neoclássicas, uma antiga vila operária, um boteco ou restaurante.
Recantos que encerram um outro modo de vida, como se a metrópole fosse um
palimpsesto a ser descoberto em cada andança. O oposto disso são edifícios
dotados de clube e shopping centers, que separam seus moradores do resto
da cidade, gerando uma nova forma de segregação do espaço, ainda mais radical
que os condomínios.
Há
pouco tempo, uma amiga carioca me disse que gostava cada vez mais de São Paulo.
Quis saber por que. Porque fiz boas amizades na metrópole vizinha, ela disse.
Senti
isso quando me mudei para cá em 1970. Morei num quarto de pensão na Liberdade.
Um dos colegas dessa pensão era outro migrante, um rapaz de Londrina que
passava o dia estudando música e que se tornou, além de um grande músico, um
grande amigo: Arrigo Barnabé.
Entendi
que São Paulo era uma meca para onde confluíam pessoas de todos os quadrantes,
as latitudes e as origens; talvez seja este o maior encanto desta metrópole que
une o culto ao trabalho com promessas de amizade. A diversidade étnica de São
Paulo reitera a mestiçagem brasileira, uma das nossas maiores riquezas.
Não
há um único paulistano que não reclame do trânsito, da poluição, da violência e
das filas intermináveis, mas as relações de trabalho e afeto, que são formas
poderosas de inserção social, servem de contrapeso ao caos e aos males da
metrópole.
Milton
Hatoum, 55, escritor, autor de Órfãos do Eldorado e Dois
irmãos (ambos pela Companhia das Letras), entre outros títulos.
Texto publicado na Revista da Folha,
25/05/2008.
Sobre a crônica
Ivan Ângelo
Uma
leitora se refere aos textos aqui publicados como “reportagens”. Um leitor os
chama de “artigos”. Um estudante fala deles como “contos”. Há os que dizem:
“seus comentários”. Outros os chamam de “críticas”. Para alguns, é “sua
coluna”.
Estão
errados? Tecnicamente, sim — são crônicas —, mas... Fernando Sabino, vacilando
diante do campo aberto, escreveu que “crônica é tudo o que o autor chama de
crônica”.
A
dificuldade é que a crônica não é um formato, como o soneto, e muitos duvidam
que seja um gênero literário, como o conto, a poesia lírica ou as meditações à
maneira de Pascal¹. Leitores, indiferentes ao nome da rosa, dão à crônica
prestígio, permanência e força. Mas vem cá: é literatura ou é jornalismo? Se o
objetivo do autor é fazer literatura e ele sabe fazer...
Há
crônicas que são dissertações, como em Machado de Assis; outras são poemas em
prosa, como em Paulo Mendes Campos; outras são pequenos contos, como em Nelson
Rodrigues; ou casos, como os de Fernando Sabino; outras são evocações, como em
Drummond e Rubem Braga; ou memórias e reflexões, como em tantos. A crônica tem
a mobilidade de aparências e de discursos que a poesia tem — e facilidades que
a melhor poesia não se permite.
Está
em toda a imprensa brasileira, de 150 anos para cá. O professor Antonio Candido
observa: “Até se poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero brasileiro,
pela naturalidade com que se aclimatou aqui e pela originalidade com que aqui
se desenvolveu”.
Alexandre
Eulálio, um sábio, explicou essa origem estrangeira: “É nosso familiar
essay², possui tradição de primeira ordem, cultivada desde o
amanhecer do periodismo nacional pelos maiores poetas e prosistas da época”.
Veio, pois, de um tipo de texto comum na imprensa inglesa do século XIX,
afável, pessoal, sem-cerimônia e, no entanto, pertinente.
Por
que deu certo no Brasil? Mistérios do leitor. Talvez por ser a obra curta e o
clima, quente.
A
crônica é frágil e íntima, uma relação pessoal. Como se fosse escrita para um
leitor, como se só com ele o narrador pudesse se expor tanto. Conversam sobre o
momento, cúmplices: nós vimos isto, não é, leitor?, vivemos isto, não é?,
sentimos isto, não é? O narrador da crônica procura sensibilidades irmãs.
Se
é tão antiga e íntima, por que muitos leitores não aprenderam a chamá-la pelo
nome? É que ela tem muitas máscaras. Recorro a Eça de Queirós, mestre do estilo
antigo. Ela “não tem a voz grossa da política, nem a voz indolente do poeta,
nem a voz doutoral do crítico; tem uma pequena voz serena, leve e clara, com
que conta aos seus amigos tudo o que andou ouvindo, perguntando, esmiuçando”.
A
crônica mudou, tudo muda. Como a própria sociedade que ela observa com olhos
atentos. Não é preciso comparar grandezas, botar Rubem Braga diante de Machado
de Assis. É mais exato apreciá-la desdobrando-se no tempo, como fez Antonio
Candido em “A vida ao rés do chão”: “Creio que a fórmula moderna, na qual
entram um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum
satis³ de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais
puro da crônica consigo mesma”. Ainda ele: “Em lugar de oferecer um cenário
excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra
nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”.
Elementos
que não funcionam na crônica: grandiloquência, sectarismo, enrolação,
arrogância, prolixidade. Elementos que funcionam: humor, intimidade, lirismo,
surpresa, estilo, elegância, solidariedade.
Cronista
mesmo não “se acha”. As crônicas de Rubem Braga foram vistas pelo sagaz
professor Davi Arrigucci como “forma complexa e única de uma relação do Eu com
o mundo”. Muito bem. Mas Rubem Braga não se achava o tal. Respondeu assim a um
jornalista que lhe havia perguntado o que é crônica:
—
Se não é aguda, é crônica.
1. Blaise Pascal (1623-1662), matemático, filósofo e teólogo francês, autor de Pensamentos.
2. “Ensaio familiar”. Ensaio é um gênero
inaugurado por Michel de Montaigne (1533-1592); vem da palavra francesa essayer
(“tentar”). Um ensaio é um texto onde se encadeiam argumentos, por meio dos
quais o autor defende uma ideia.
3. Em latim, “a quantidade necessária”.
Veja São Paulo, 25/4/2007.
Do rock
Carlos Heitor Cony
Tocam
a campainha e há um estrondo em meus ouvidos. A empregada estava de folga, o
remédio era atender o mau-caráter que me batia à porta àquela hora da manhã.
Vejo o camarada do bigodinho com o embrulho largo e enfeitado.
—
É aqui que mora a senhorita Regina Celi?
Digo
que não e fulmino o importuno com um olhar cheio de ódio e sono, mas antes de
fechar a porta sinto alguma coisa de íntimo naquele “senhorita Regina Celi”,
sim, há uma Regina Celi em minha casa, minha própria filha, mas apenas de 12
anos, uma guria bochechuda ainda, não merecia o título e a função de senhorita.
Chamo
o homem que já estava no elevador. Eram CDs, a garota encomendara um mundão de
CDs numa loja próxima, e pedira que mandassem as novidades, pois as novidades
estavam ali, embrulhadinhas e com a nota fiscal bem às claras.
Gemo
surdamente na hora de assinar o cheque e recebo o embrulho. A garota dormia
impune, o mundo podia desabar, e ninguém a despertaria do sono 12 anos. Deixo o
embrulho em cima do som e volto para a cama, forçar o sono e a tranquilidade
interior, abalada pelo cheque tão matutino e fora de propósito. Quando ordeno
os pensamentos e ambições no estreito espaço do meu pensamento e retomo um sono
e um sonho sem cor nem gosto, começa o rock.
Anos
atrás, seria começa o beguine. Mas o beguine passou de moda, e o swing,
o mambo, o baião e outras pragas vindas de alheias e próprias pragas. Pois aí
estava o rock, matinal, cor de sangue e metal inundando o dia e o quarto com
sua voz rouca, seu compasso monótono e histérico.
Purgo
honestamente meus pecados e lembro o pai, que me aturava a mania pelos sambas
de Ary Barroso. O velho não dizia nada, mas me olhava fundo e talvez tivesse
ganas de me esganar. Mas me aturava e aturava o meu Brasil brasileiro.
Hoje,
aturo o rock. Vou ao banheiro, lavo o rosto, visto um short
e vou para a sala disposto a causar boa impressão à senhorita Regina Celi, que
de babydoll, esbaforida, se degringola ao som de
U2.
O
tapete já fora arrastado e amarfanhado a um canto. Meu castiçal de prata foi
profanado com a cara de um tipo até simpático que naquela manhã ganhará alguma
coisa à custa do meu labor e cheque.
A
senhorita Regina Celi tem a cara afogueada, os pés e as pernas avançam e ficam
no mesmo lugar, o corpo todo treme e sua, até que ela me estende o braço.
—
Vem, papai!
O
peso dos meus invernos e minhas banhas causa breve hesitação. Mas ali estamos,
eu e a senhorita Regina Celi, uma menina que ainda pego no colo e aqueço com
meu amor e o meu carinho, quando ela tem medo do mundo ou de não saber os
afluentes da margem esquerda do rio Amazonas na hora do exame. Ela me chama e
me perdoa.
Então,
aumento o volume do som, espero o tal do U2 dar um grito histérico e medonho -
e esqueço o cheque, a vida e a faina humana rebolando este cansado corpo-pasto
de espantos - até que o fôlego e o U2 acabem na manhã e no som.
Crônicas para se ler na escola. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2009.
Considerações em torno das aves-balas
Ivan Ângelo
Balas
perdidas transformam-se em notícia por todo o país.
Desde
que isso começou — não faz muito tempo, nem pouco — mais de uma centena de
pessoas foram atingidas só na cidade do Rio de Janeiro. Em São Paulo não se
conta, ou perde-se a conta. Em Belo Horizonte, elas sinistramente trabalham em
silêncio. Em Salvador são abafadas pelo baticum dos tambores. Sem nenhum
bairrismo elas voam geral, irrompem num circo, num ônibus, numa janela de sala
de estar, numa padaria, em muitas escolas, numa praça, num banco, numa rua e se
alojam num corpo. Aí se livram da sua característica principal — a de perdidas
— e se acham, são achadas.
Por
que se diz perdida? Perdida é a bala que não se encontra nunca, são as que voam
até perder a força e tombam, exaustas e sem glórias de Jornal
Nacional, num mato qualquer.
A
bala perdida: quem a perdeu? A linguagem tem sempre uma lógica. Quem perdeu a
bala perdida? O atirador? Pior para quem a achou.
Uma
pessoa quando perdida, não tem rumo. Se diz: desorientada. Uma bala não. A bala
perdida segue reta e veloz como quem sabe aonde vai. Igualzinho às outras, suas
irmãs, que levam endereço certo.
Perdida,
então quer dizer o quê? Desperdiçada? A linguagem nem sempre tem lógica. Quem
perdeu a bala perdida? O atirador? Pior para quem achou.
Quando
acha um corpo a bala pode ainda se chamar perdida? A que acha, mesmo não sendo
aquele corpo que buscava, será menos desperdiçada do que as outras, que
esbarram em uma simples parede?
Ninguém
procura balas perdidas. Nem quem as perdeu, nem quem as encontrou, sem querer.
São indesejadas, e quanto mais o sejam, mais ansiosas parecem por alojar-se.
Essas balas voadoras, libertas da sua casca, só são realmente perdidas se
ninguém nunca mais as viu. Então são também inúteis, pois isso é a negação da
sua essência mortal.
Uma
bala, quando útil, fere, mata. É criadora: cria órfãos, viúvas, pais
inconsoláveis. Quem a dispara sabe disso. Quem fabrica e vende sabe disso. Quem
recolhe impostos sobre ela sabe muito bem. Porque ela não serve para mais nada,
para isso foi feita.
Seria
próprio chamar de desaparecidas essas inúteis? No país das balas perdidas,
perdem-se também crianças, chamadas desaparecidas. Mas esta já é outra
história.
Não,
a essas balas não se poderia chamar de desaparecidas porque ninguém sabia delas
antes de se libertarem de sua casca, ainda pacíficas, guardando para si sua
capacidade voadora e mortal. Só depois que explodem é que voam, e então se
perdem ou não.
O
poeta João Cabral de Melo Neto deu um lindo nome a essas balas sem dono:
ave-bala. No poema “Morte e vida Severina”, o retirante pergunta aos que levam
um defunto: “Quem contra ele soltou / essa ave-bala”. E a resposta: “Ali é difícil dizer / Irmão das
almas, / Sempre há uma bala voando / desocupada”.
Éramos
um povo acostumado à arma branca, à peixeira, ao punhal, ao facão; herdamos a
tradição ibérica de sangrar, cortar o pescoço, capar. Meninos já tinham seu
canivete de ponta. Malandros riscavam o ar com navalhas. Mulheres da vida
brandiam giletes. Numa arruaça, quem metia a mão numa cara, dava rasteiras. Em
algum momento o “te meto a faca” virou “te meto a bala”, aquele “te meto a mão
na cara” virou “te meto uma bala na cara”. Começaram a voar as aves-balas.
O
que aconteceu no meio? Talvez o cinema, o faroeste, os gangsters, a TV,
guerras sujas, guerrilhas, terrorismo, drogas proibidas. Nasceu o culto da
pontaria certeira. Billy the
Kid, John Wayne, Randolph Scott, Frank e Jesse James, Schwarzenegger, Stalone,
Matrix. “No século do progresso / o revólver
teve ingresso / pra acabar com a valentia” — cantou Noel Rosa nos
anos 1930. Surgiu outro tipo de valente, o que fica atrás do revólver. Não é
preciso arriscar-se, chegar perto para ferir. “Mais garantido
é de bala / Mais longe fere”, diz o poeta João Cabral. Ninguém
pense que a influência estrangeira é justificativa. Não, não importamos a
violência, ela é mais nossa que o petróleo. Importamos foi a cultura da arma de
fogo.
No
país das balas perdidas, perdem-se também crianças, nem sempre desaparecidas.
Muitas delas, talvez a maioria, vão mais tarde brincar por aí de soltar
aves-balas, nem sempre perdidas.
O comprador de aventuras e outras
crônicas.
São Paulo: Ática, 2000. Coleção Para Gostar de Ler, v. 28.
Pavão
Rubem Braga
Eu
considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo
imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não
existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas
d’água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de
plumas. Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de
matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu
grande mistério é a simplicidade.
Considerei,
por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e
esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz
de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
Ai de ti, Copacabana. Rio de Janeiro:
Editora do Autor, 1960.
Obrigada pela publicação.
ResponderExcluirValeu mesmo¹
Várias crônicas reunidas num só blog...jóia.
ResponderExcluirGostei muito! Ótimas crônicas em um só lugar.
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